#001 - Devora-me ou te decifro
Uma viagem muito doida ou por que você precisa aprender a apreciar o que não gosta
"A música não é simplesmente pra ser bela. A música não é simplesmente pra ser bonita. A música é pra ter personalidade, pra te fazer sentir alguma coisa, sentir algo, uma estranheza, o que for".
Marina Sena, cantora.
A frase acima foi dita por Marina Sena em uma entrevista ao Pedro Bial, dias atrás, e fiquei pensando no quanto as pessoas associam o gostar de uma obra (ou artista), seja de qual arte ela for, majoritariamente ao que elas acham bonito. O belo está diretamente associado à maior parte das coisas que a gente aprecia. Mas eu não quero falar do belo –tampouco do cantor.
O que me intriga é o que está por trás de gostarmos do belo, que é uma zona de conforto na qual aquilo que nos agrada nos agrada (han?), e o que desagrada, não (pelo amor de deus, Carlos!). Parece viagem, mas vem comigo!
Um dos livros que estou lendo no momento se chama “Não Aceite Caramelos de Estranhos”, da autora chilena Andrea Jeftanovic. É um livro de contos –onze no total–, todos falam de relacionamentos íntimos (e aí entende-se intimidade de uma forma relativamente ampla) e familiares.
O primeiro conto dessa coletânea se chama “Árvore Genealógica”, e a epígrafe desse capítulo traz uma citação do antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss: “O que é proibido? A sociedade não proíbe nada além daquilo que ela mesma suscita”.
Tudo dito até o momento, título e epígrafe, serve para cimentar o que vem depois. Ainda assim não estamos preparados para o que vem a seguir, e ficamos sem chão já na primeira frase do conto:
“Não sei quando comecei a me interessar por nádegas de crianças”.
Não há qualquer julgamento da autora sobre nenhuma das situações que ela narra (ao menos até o ponto em que estou). Toda a avaliação moral sobre o que estamos lendo fica por conta de nós mesmos. E é muito doido como ficamos tão mal acostumados com obras moralmente questionáveis (que geralmente rejeitamos) ou moralmente “corretas” (que geralmente aceitamos), que sentimos o impacto e ficamos geralmente desnorteados quando uma obra se propõe a ser amoral (se é que isso é possível), ou ao menos a chegar o mais próximo disso.
A gente poderia discutir aqui por bastante tempo esse tipo de coisa no cinema, onde é muito comum isso acontecer, justamente por ser uma arte mais popular e acessível que as artes plásticas, por exemplo. E dentro de uma bolha cinéfila onde se ama ou se rejeita nomes como o de Clint Eastwood, que pessoalmente é um cara alinhado mais ao conservadorismo (embora vários de seus filmes sejam exatamente o oposto), ou de filmes como “Marighella”, mais alinhado a pensamentos ditos progressistas (mas que… deixa pra lá), essas discussões são recorrentes.
Mas esse papo todo de rejeição daquilo que não nos agrada moralmente me lembrou do excelente vídeo da Clara Matheus, do canal Mimimidias, sobre pixo e graffiti. Nele, entre outras coisas, ela traz uma ideia do sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, em seu ensaio “Kool Killer ou a insurreição pelos signos”, sobre a cena do graffiti de Nova York nos anos 1970, no qual ele diz que, pra ele, o graffiti é uma forma de escrita que não comunica nada e que não tem significado.
No alto de sua arrogância de homem branco europeu, um dos grandes pensadores do século 20 foi incapaz de estar aberto a uma forma de arte que ele simplesmente não entendia, ou que não se comunicava especificamente com ele, uma vez que o graffiti e a pixação falam muito mais com a população mais à margem da sociedade, no caso de Nova York, os bairros negros e latinos.
Acho que esse estranhamento com o pixo ou com o graffiti, seja por conta de questões estéticas, políticas ou morais, dialoga bastante com o quanto nós muitas vezes rejeitamos o que foge da nossa zona de conforto. E obviamente isso também acontece em outras esferas da vida, com uma porção de outros preconceitos.
Mas em se tratando de arte, essa característica é justamente o que acaba me atraindo: buscar o que eu não entendo, o que não conheço, o que me é estranho. Se eu só aprecio o que já naturalmente gosto, chega uma hora que nada mais me impacta, me tira o norte. E começar a ler um livro no qual a primeira frase é praticamente um atestado de incesto e pedofilia de um personagem me tira o norte, especialmente quando a autora não está preocupada em me vender junto desse conto uma condenação desses comportamentos (tampouco a aprovação dos mesmos), o que nos eximiria de culpa.
É como ver, ler, ouvir uma obra que não se entende quase nada. E estar aberto a esse tipo de experiência é quase como entrar em um carro desgovernado descendo uma ladeira no escuro. Absolutamente tudo pode acontecer (inclusive nada rs), e eventualmente você sai com arranhões ou todo quebrado. Mas quando se sai vivo, ao menos temos uma grande história pra contar.
Isso me fez lembrar de uma fala da Renata de Almeida, diretora da Mostra de Cinema de SP, afirmando que ela não gosta muito de quando os filmes selecionados para a Mostra acabam sendo colocados em caixinhas específicas, em listas que agrupam as obras por temáticas. É claro que isso facilita pra quem busca determinados tipos de filme, mas aí é inevitável pregar para convertidos. Pra ela –e tendo a concordar um pouco com o pensamento–, quando você enquadra previamente um filme em uma categoria, você evita que quem mais precisa ver aquele tipo de filme o veja.
Um exemplo: se antes de uma mostra acontecer uma parte dos filmes já é colocada dentro de uma categoria “LGBTQIA+”, pessoas com resistência e preconceito com obras nessa temática já não irão assistir a esses filmes. Se a temática não está posta logo de cara, a chance de algum espectador cair desavisado em uma sessão de um filme desses e acabar sendo impactado é maior. E é justamente esse espectador que esses filmes precisam atingir. É nesse vespeiro que esse trabalho precisa mexer. É nessa cara que essa obra precisa bater até que ela saia desfigurada da sala de cinema, mas com esperanças de que ela possivelmente se recupere depois, trazendo consigo as marcas da guerra, algum aprendizado.
Toda essa digressão que pareço estar fazendo é apenas pra reforçar a ideia de que a gente precisa se permitir sair de uma zona de conforto quando se trata de arte. (E se alguém vier com papinho comédia de startupeiro de “pensar fora da caixa”, eu vou excluir a assinatura dessa newsletter, hein? rs). E a gente só consegue isso se busca coisas mais complexas, diversas, com as quais a gente teve pouco ou nenhum contato antes. Se a gente só vê o que gosta, se só lê o que entende totalmente, se só ouve o que já reconhece como bonito, a gente deixa de aprender, de crescer, de passar a gostar de algo que achava feio.
Da arte e de artistas, eu não espero que eles façam algo que me agrade intencionalmente. Esse talvez seja o pensamento das pessoas que atacam a Marina Sena pelo seu timbre “esquisito”, não bonito, ao cantar. Talvez eles esperem ser agradados apenas, serem premiados só com o que julgam belo. No meu caso, eu espero que artistas sejam inquietos, provocadores, revolucionários, talvez. De vanguarda, sempre que possível.
Obviamente, nem todos serão, e há muita arte boa que não é inquieta, provocadora e revolucionária, mas que se garante de outras formas. No entanto, é importante que o artista tenha no mínimo o desejo de não ser “só mais um”, de criar “só mais uma arte”, eu torço pra que ele tenha o desejo de revirar as minhas entranhas, e que não tenha medo de se arriscar, de matar ou de morrer pela sua obra.
Da arte, eu não espero que ela só me dê colo e faça carinho no meu ego. Eu gosto quando ela me esquarteja e espalha meus pedaços em praça pública, para a contemplação geral e irrestrita. “Eis aqui os restos mortais de um ordinário admirador da minha criação. Achou que estava preparado para tudo. Não aguentou foi nada”, diria o artista. Eventualmente, esses restos mortais são recolhidos e remontados em um novo eu. A arte que não tem a pretensão de me matar está fadada a morrer.
Uma mão cheia de dicas na sua cara
Você já ouviu falar numa cineasta chamada Maya Deren? Ela foi uma artista ucraniana (já que cêis tudo viraram especialistas em Ucrânia agora rs) que fez vários filmes experimentais. Alguns deles são muito muito bons (“Tramas do Entardecer” é uma obra-prima), e vários (senão todos) estão disponíveis no YouTube. Mas não vou compartilhar link, justamente porque a dica é outra: se você é de São Paulo, o Sesc Avenida Paulista está com uma mostra dedicada a ela, que vai até 3 de junho. Além dos filmes, há outros eventos relacionados a ela no programa. Dá uma conferida;
Outra cineasta que também fez vários filmes experimentais (muito bons) é a belga Chantal Akerman. Uma porção de filmes dela está em cartaz na plataforma Filmicca, mas se você não tem assinatura, eu sei que você, cria da internet, vai dar seu jeito. Nessa newsletter, não incentivamos a pirataria. 🤫
Embora seu filme mais aclamado seja “Jeanne Dielman”, recomendo que assistam a “Hotel Monterey”. Durante pouco mais de uma hora, acompanhamos a câmera da Chantal dentro desse hotel,
entrando e saindo deparada em andares, em elevadores, em corredores escuros. E mais nada. É chato! E também por isso inquietante. E talvez por isso maravilhoso. Conforme o tempo passa, e eventualmente uma ou outra coisa (não) aconteça, começa a passar em um monte de coisa na nossa cabeça. Fiz um breve comentário sobre ele no Letterboxd, essa foi a sensação que ele me passou e que “só quem viveu sabe, Gabi”. E aí, vai encarar ou vai passar o resto da vida achando que cinema é só filme da Marvel?;
Mais uma vez falando de Sesc, dessa vez o 24 de Maio (me desculpe se você não for de São Paulo), essa outra mostra “Mulheres Protagonistas na História do Cinema Hollywoodiano” também está incrível! Ela é curada e comentada pela antropóloga, crítica de cinema e pesquisadora Isabel Wittmann. Dois encontros já aconteceram, ainda sobram seis. Tem muita coisa boa vindo por aí. Não seja tonto de perder. O próximo filme é uma das melhores comédias de todos os tempos, a obra-prima “Aconteceu Naquela Noite”, do Frank Capra;
Você talvez tenha ouvido falar que os Estados Unidos podem acabar proibindo o direito ao aborto no país, deixando a cargo dos estados decidirem como quiser sobre essa questão, e controlar os corpos das pessoas que engravidam. Recomendo que leia a thread do Cine Suffragette no Twitter para entender exatamente do que se trata tudo isso e quais as implicações nos EUA e fora dele, inclusive no Brasil, de uma decisão como essa;
Já que eu já falei de um monte de coisa esquisita que causa estranhamento, vou finalizar com algo que é, além de muito bom, muito belo, porque aqui eu agrado a todos os públicos rs. Dia desses, assisti aos dois ótimos shows do Harry Styles (não é da beleza dele que eu vou falar) no festival Coachella, e me chamou atenção a ótima banda que o acompanha, em especial a multi-instrumentista e vocal de apoio Ny Oh. Fui atrás pra saber mais por trás daquele talento e bela voz.
Ela é uma musicista inglesa, criada na Nova Zelândia e que vive em Los Angeles, e tem uma carreira solo autointitulada, com uma pegada meio folk-indie, mas com influências diversas. Inclusive, em vários momentos ela canta com um estilo meio country que me fez pensar se ela não era de Nashville, o que já sabemos que não é. Mas certamente tem algo lá que grita forte nela. É uma bela voz, músicas bonitas, um pezinho nos anos 70 também. Eu talvez esteja um pouco apaixonado pela Ny Oh;
Já a outra banda dela, a Neon Gru, tem uma pegada totalmente diferente. É mais jazz, com um groove meio funk, mas que também tem bastante influência de música psicodélica, rock progressivo e tal. Acho que quem gosta de coisas como Snarky Puppy ou The Reign of Kindo vai achar Neon Gru bem interessante. Ouça! Quem sabe você não descobre uma coisa nova pra gostar e pode surpreender alguém repassando essas sugestões.
Agora chega! Já tá longo demais isso.
Obrigado a todo mundo que assinou a newsletter com aquela primeira publicação do início da semana. Eu não esperava receber o carinho e a confiança de tanta gente depois de tanto tempo sem publicar e compartilhar coisas na internet. A gente não carpiu todo aquele mato à toa lá atrás. Por diversos motivos, sinto que a gente tem passado por um longo trecho de mata fechada, mas parece que já podemos vislumbrar uma claridade chegando. e um grande campo aberto se desenha pela frente. Talvez em breve a gente volte a correr por ele. Vamos juntos?
Arte: Saturno Devorando um Filho, de Francisco de Goya. (lá no topo)
Fala comigo: Twitter, Instagram, Letterboxd, respondendo esse e-mail ou comentando na caixinha (ou balãozinho). E se você gostou dessa publicação, considere compartilhar usando o botão abaixo.