#002 - A nossa vida é um engano
A gente devia tossir a fumaça preta, cuspir fora o pedaço de ferro do nosso pulmão
“Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
Muitos morreram sim, sonhando alto assim
Me digam quem é feliz
Quem não se desespera
Vendo nascer seu filho no berço da miséria(...)
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim
Num necrotério qualquer, como indigente
Sem nome e sem nada
O homem na estrada(...)
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim
Minha verdade foi outra
Não dá mais tempo pra nada”
Essa é uma das cenas mais fortes do filme “Arábia” (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, que relata parte da história de Cristiano, um homem na estrada tentando recomeçar sua vida após ter passado um período na prisão.
Narrada pelo próprio Cristiano, essa ficção, que de tão naturalista parece documental, gira em torno de um relato desse personagem, que quer contar sobre um grande amor que viveu, mas que sente que pra chegar até lá precisa contar outras histórias primeiro. Com isso, conhecemos como foi a vida desse ex-presidiário do momento em que ele saiu da prisão até encontrar e viver esse amor. Mas o cerne dessa história está no retrato de uma vida comum de um homem periférico, que busca um futuro (melhor), e que conhece pelo caminho uma porção de homens como ele, trabalhadores precarizados, escravos modernos, que sozinhos podem muito pouco, mas que em grupo, organizados, poderiam muito mais.
Alguns sabem muito bem disso. Chegam a enxergar que se hoje não estão “tão ruins”, comparados ao que trabalhar já significou no passado, foi justamente pela luta de outros trabalhadores que pensaram e agiram coletivamente. Mas ainda assim não possuem força suficiente de uma nova unificação, e cada um e todos eles são moídos pelas engrenagens desse sistema.
“Arábia” é um filme sobre tomada de consciência, de quem se é como indivíduo e de quem se é como classe, mas também é uma espécie de lamento. O relato de Cristiano é quase como uma ária melancólica sobre a situação da classe trabalhadora no Brasil. Trabalhadores que se divertem contando piadas envolvendo outros trabalhadores, que cantam músicas de diferentes gêneros, mas que todas elas de uma forma ou de outra conversam com a sua realidade, e que sonham acordados comparando as melhores e piores cargas para se levar nas costas.
Cristiano acorda, mas ele não tem força, e por isso é derrubado. E engana-se quem pensa que Cristiano ao contar sua história não está também contando a nossa. Em maior ou menor grau, vale sempre lembrar que se a gente depende de um salário para estar vivo, de vender a nossa força de trabalho para não morrer, a gente está no mesmo barco, ou no mesmo chão de fábrica. Nós somos só um bando de cavalos velhos precisando ir pra casa, como diz um trecho que reproduzo abaixo de uma das falas de Cristiano.
E se você chegou nesse ponto pensando “pronto, tava demorando pra vir pregar sobre comunismo”, já adianto que eu não vou pregar é nada. Eu nem sou ninguém pra fazer isso. E também sei que ninguém ia me ouvir, porque ninguém gosta de ouvir essas coisas. Eu só queria ir pra casa, tossir a fumaça preta e cuspir fora o pedaço de ferro no meu pulmão.
“Eu senti meu ouvido fechando e fiquei um pouco surdo por alguns segundos. Nesse momento, aconteceu uma coisa muito estranha: o barulho da fábrica sumiu, e eu ouvi o meu próprio coração. E pela primeira vez, parei pra ver a fábrica, e senti uma tristeza de estar ali. E percebi que na verdade eu não conhecia ninguém. Que tudo aquilo não significava nada pra mim. Foi como acordar de um pesadelo.
Me sinto como um cavalo velho, cansado. Meus olhos doem, minha cabeça dói. Não tenho força pra trabalhar. Inspiro rapidamente, meu coração é uma bomba de sangue. Queria puxar meus colegas pelo braço e dizer pra eles que eu acordei. Que enganaram a gente a vida toda.
Estou cansado. Quero ir pra casa. Queria que todo mundo fosse pra casa. Queria que a gente abandonasse tudo e deixasse as máquina queimando, o óleo derramando, os pedaço de ferro abandonado, a esteira desligada, a lava quente derramando e inundando tudo. Queimando as máquina, a terra, a brita, e a fumaça subindo, preta igual a noite, tampando o céu e jogando dinheiro fora. E a gente ia tá em casa, tomando água, dormindo à tarde. A gente ia tossir a fumaça preta, ia cuspir fora o pedaço de ferro do nosso pulmão. O nosso sangue ia deixar de ser um rio de minério, de bauxita, de alumínio, e ia voltar a ser vermelho, igual quando a gente é novo. E é por isso que eu queria chamar todo mundo. Chamar os forneiro, os eletricista, os soldador e os encarregado. Os homens e as mulheres. E dizer no ouvido de cada um: 'Vamo pra casa, nós somos só um bando de cavalos velhos'. Mas eu sei que ninguém ia me ouvir, porque ninguém gosta de ouvir essas coisas. Mas eu queria falar no ouvido de cada um deles: ‘A nossa vida é um engano, e a gente vai sempre ser isso. E tudo o que a gente tem é esse braço forte, e a nossa vontade de acordar cedo’.”
Uma mão cheia de dicas na sua cara
“Arábia” é um filme que ganhou muitos prêmios, boa parte deles para o Aristides de Sousa, ator que interpretou Cristiano. Assim como o personagem, ele é ex-presidiário. Nessa matéria você pode ler um pouco mais sobre isso.
Os versos que abrem essa newsletter são da música “Um Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s. No fim de abril eu fui ao show deles no Espaço das Américas, em São Paulo, e escrevi sobre essa experiência.
Recentemente, uma votação organizada pelo jornalista Ricardo Alexandre, do podcast Discoteca Básica, elegeu, com votos de 162 especialistas, o “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento & Lô Borges, como o Maior Álbum de Todos os Tempos da Música Brasileira. O “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais, ficou na 9ª colocação. Você pode ver a lista aqui e ouvir o Discoteca Básica sobre o “Clube da Esquina” logo abaixo.
Se nenhuma dessas recomendações te interessa, se você é mais do time “coisas gringas”, já que só indiquei ~brasilidades, deixo uma breve recomendação. Se você não passou os últimos três anos em coma, provavelmente deve ter ao menos ouvido falar na Billie Eilish. Mas não vou falar dela, quero falar de seu irmão, Finneas. Ele compõe e produz todas as músicas junto com a Billie, mas ele é incansável e além de também compor e produzir outros artistas, também tem uma carreira solo.
Não sei exatamente como descrevê-lo sem usar de uma comparação que talvez seja um pouco impactante pra algumas pessoas: ele é tipo um Harry Styles, mas talvez melhor. Ao menos em estúdio. Ao vivo, vou ficar devendo essa comparação. Mas a real é que o Finneas compõe muito bem e é um produtor deveras criativo, e muito do que a Billie Eilish é como artista (e eu sou bem fã) é também por causa dele.
Acho que é isso: assistam “Arábia” (deem seus pulos); ouçam Racionais, Clube da Esquina e Finneas; leiam Lênin, tenham consciência de classe.
Um beijo e até a próxima!
Arte: Operários, de Tarsila do Amaral. (lá no topo)
Fala comigo: Twitter, Instagram, Letterboxd, respondendo esse e-mail ou comentando na caixinha (ou balãozinho). Se você gostou dessa publicação, considere compartilhar usando o botão abaixo, e assine para receber as próximas. É de graça! Toma essa, Paulo Guedes!