#006 - O show tem que continuar
Não tem Queen nem Fundo de Quintal, mas tem um pouco de Pink Floyd
“Deve ter havido um engano,
Eu não pretendia deixar
que eles roubassem minha alma
Estou muito velho? É tarde demais?
(...)
Para onde o sentimento foi?
(...)
Eu lembrarei das músicas?
O show deve continuar”"The Show Must Go On" - Pink Floyd
Não sei qual é a sua relação com shows, mas a minha é incrível. Esses dias, li uma das edições da newsletter da Jessica Correa falando justamente sobre o assunto e fiquei com vontade de falar um pouco sobre também. “É um sentimento em uníssono, uma única voz de milhares de pessoas voltadas para um único foco, um momento especial”, disse ela. E eu concordo 100%, talvez você também.
Nunca fui dessas pessoas que vão a shows de bandas covers, ou aquela banda pequena desconhecida num bar x com suas músicas próprias. Veja bem, eu respeito muito quem ~prestigia seu artista local, porém a minha grana sempre foi curta e sempre acabei preferindo economizá-la para me garantir nos que eu de fato gostaria muito de ir. Ainda assim, perdi bastante coisa que queria ver, mas também vi algumas dezenas de shows dos meus artistas favoritos em espetáculos memoráveis.
Como a Jessica disse, tem algo especial em shows, algo que nunca senti em qualquer outro tipo de evento. Provavelmente, vocês sabem que eu amo cinema, mas não chega aos pés da catarse coletiva de ver seus artistas favoritos em um palco e milhares, às vezes dezenas de milhares de pessoas sintonizadas na mesmíssima frequência.
A energia no ar é quase palpável. O clima de um show é indescritível, a chegada ao local, a espera na fila, a entrada na casa ou no estádio. A tensão pré-show, os testes de som, possíveis artistas de abertura. Pra qualquer lugar que você olhe as pessoas estão sorrindo, empolgadas, relembrando suas músicas favoritas, os álbuns que gostam ou não. Você sempre acaba engatando um papo com qualquer desconhecido completamente aleatório e viram melhores amigos por alguns minutos ou horas.
Sempre há pessoas de outros estados, e você, se você for o local, vai sempre olhar admirado e entender imediatamente a devoção da galera que se locomove dentro de um país do tamanho de um continente pra viver uma hora e meia, duas horas de uma catarse que ela não conseguiria de outra forma.
E aí há o show em si. Acho que dei muita sorte nessa vida, porque posso reclamar de pouquíssimos shows que presenciei. E tenho mais memórias incríveis desses momentos do que ruins. O curioso dessas memórias é que muitas vezes elas são pequenos fragmentos de uma apresentação muito maior e que a nossa memória não é capaz de registrar por inteiro. Mas são essas fagulhas de magia que nos fazem reacender uma chama nostálgica desses eventos.
Acho que nunca vou me esquecer de quando, ao lado de alguns amigos, presenciei o Aerosmith, em 2007, minha primeira banda favorita da vida, tocando “I Don’t Want to Miss a Thing” (não é minha música favorita, mas é a que me transformou num fã da banda), e que foi uma experiência praticamente transcendental, porque o Morumbi todo pareceu concentrar todas as energias individuais dos espectadores e explodir em um grito primal junto com o Steven Tyler. Talvez fosse só eu, mas o meu sentimento foi exatamente esse.
Eu jamais conseguiria apagar, nem se tentasse, a epifania pessoal que tive quando o Elton John tocou “Tiny Dancer”, em 2009, para um público no Anhembi cuja faixa etária era provavelmente o dobro da idade que eu tinha, e eu fui automaticamente transportado para os anos 70. Por quatro ou cinco minutos o tempo parou de existir. Tínhamos todos a mesma idade, que era a mesma do universo.
Cético de tudo como eu, aceito a possibilidade de que o metafísico se manifeste em um show. Eu jamais conseguiria explicar no universo tangível o que foi ter ouvido a primeiríssima nota tocada pelo David Gilmour no Allianz Parque em 2015. Com uma nota tocada eu já não era mais eu, eu era o todo, o universo inteiro. E eu poderia apostar que se um telescópio apontasse para aquele estádio naquela noite, tudo o que ele enxergaria seria um grande buraco de uma massa negra cheia de energia, ainda que do lado de dentro lasers de todas as cores iluminassem o ambiente.
Como é possível que você que está me lendo nesse momento entenda o que foi ouvir o Steve Wonder começar a cantar uma música no Campo de Marte, em 2013, soar levemente desafinado (para seus padrões), e decidir interrompê-la pra mastigar alguns pedaços de gengibre estrategicamente guardados em um potinho embaixo do seu piano, e depois retomá-la do início com a voz cristalina feito diamante? Só quem viveu sabe.
E sair do show do Roger Waters da turnê do The Wall, em 2012, levando um pequeno pedaço do grande muro que desaba sobre o palco e parte do público? E ser praticamente esmagado na grade do show do Black Sabbath, em 2009, mas ver o Ronnie James Dio cantar olhando nos seus olhos e fazendo o famigerado chifrinho com os dedos? E subir no palco pra cantar “Volcano” com o Damien Rice também em 2009? Sim, tudo isso aconteceu de verdade.
Muita coisa em shows não dá pra explicar, mas algumas sim. Em 2018, também com alguns amigos, tive um breve momento de um choro de tristeza quando o Roger Waters tocou “The Last Refugee”. Era outubro, e no dia anterior ao show que fomos já havia tido uma polêmica sobre uma faixa de algum fã burro que o xingava e pedia apenas para que ele tocasse suas músicas, e não falasse sobre política.
O jumento (perdoem o meu francês, mas não dá pra ser diferente) devia estar ali completamente desavisado, porque como não saber que a carreira (e a vida pessoal) do Waters (e do Pink Floyd) há pelo menos 50 anos sempre foi pautada por temas políticos, especialmente no enfrentamento de estados e figuras autoritárias? Se ele não cantasse ou falasse de política, sobraria o que pra apresentar ao asno da faixa?
Mas enfim, aquele show teve um clima esquisito com uma plateia parcialmente bizarra, claramente bolsonarista, três dias após o primeiro turno das eleições presidenciais. E em mais de um momento vimos pequenas brigas físicas de gente provavelmente discordando do teor político da coisa toda. Estávamos rodeados de fascistas em um show de um dos maiores artistas antifascistas da história.
Meu choro em “The Last Refugee” foi disparado pela beleza e pela tristeza do clipe projetado no telão, somado a tudo o que descrevi anteriormente. Como é possível alguém estar ali e não entender o que estava vendo? É preciso ter um monte de bosta no lugar do cérebro, e outro no do coração.
Nesse segundo show do Waters em São Paulo, ele teria sido censurado por ter exibido na noite anterior o nome de Bolsonaro em uma lista de neofascistas em ascensão pelo mundo, junto de nomes como Donald Trump, Vladimir Putin, Marine Le Pen e Viktor Orbán, entre outros. Onde deveria estar o nome de Bolsonaro, foi incluída uma faixa escrita “Ponto de vista político censurado”.
Ninguém sabia naquele momento se ele aceitaria ser censurado, passou-se o dia inteiro comentando a respeito nas redes sociais. A princípio, quando a lista apareceu no telão e a tarja com a mensagem pôde ser lida, rolou um misto de tristeza e parcialmente uma leve decepção, por ele talvez ter cedido a uma decisão judicial absurda. Mas a sensação foi rápida, porque de repente a faixa começa a piscar, sumindo e voltando à tela, e embaixo dela é tranquilamente legível (não no vídeo ruim abaixo) o nome do verme maldito que ganharia as eleições no mesmo mês. É preciso muito mais do que isso pra parar a luta de uma vida inteira do Waters.
Desse momento em diante, quem estava lá porque sabia quem ele era de fato foi instantaneamente tomado por um sentimento de pertencimento. “Esse lugar é nosso e estamos entre os nossos”, provavelmente pensamos muitos. Em “Another Brick in the Wall, Part 2”, um coro de crianças sobe ao palco pra cantar com ele. Em determinado momento, eles arrancam o macacão que estão vestindo e por baixo exibem camisetas estampadas com um RESIST, mesma palavra projetada gigantescamente no telão, que também exibiu um ELE NÃO. Certamente as minhas cordas vocais e a de muita gente naquele local sofreu danos irreparáveis para o resto da vida.
Em Curitiba, Waters ainda provocaria novamente Bolsonaro e seus apoiadores no último dia permitido para propaganda eleitoral. Poucos segundos antes da proibição de mensagens de teor político, foi exibido no telão a seguinte mensagem: “Temos 30 segundos. Essa é nossa última chance de resistir ao fascismo antes de domingo. Ele Não!”. Quem homem!
Talvez seja difícil imaginar todos esses sentimentos sem tê-los vivido. E justamente por isso um show é algo tão especial, porque cada um é único, e cada pessoa vivencia uma experiência coletiva individualmente diferente. Vai ver é por isso que a “coreografia” comum ao vivenciar algo assim seja com os braços abertos, geralmente estendidos na direção do artista, e os olhos fechados. Deve significar algo como “eu confio em você, pode jogar em mim toda a sua energia que eu a recebo de braços abertos”.
Em todo show que vou, há um momento em que me viro pra olhar o público e observar como as outras pessoas vivenciam esses momentos. O sentimento comum é de êxtase total. Não julgo, e além de tudo, pratico.
Uma mão cheia de dicas na sua cara
Por falar em shows, esses dias andei vendo um pocket acústico que a Billie Eilish fez na Alemanha. É uma apresentação muito bonita e divertida (ela é carismática demais, socorro, melhor pessoa!). Curtinho, menos de uma hora, passa muito rápido e deixa aquela sensação de que ela poderia cantar mais duas horas tranquilamente que a gente ia continuar curtindo.
Esse formato acústico funciona demais pra boa parte das músicas dela, que tem essa pegada mais “melancolicalminha” (criei, hein?). Eu adoro o momento em que ela canta “When the Party Is Over”, do primeiro álbum, porque ela diz que não consegue mais alcançar a nota mais alta dessa música. Ela gravou ainda adolescente, provavelmente a voz já mudou bastante. Mas acho que meu momento favorito é com “Ocean Eyes”, que casa demais nesse formato e tem uma das linhas vocais mais bonitas dela;
E essa performance aqui da Liniker que é espetacular? Preciso parar e dar mais atenção a ela. Essa música, “Lalange”, tá no seu último álbum, “Indigo Borboleta Anil”, lançado no ano passado;
Nesse segundo semestre, além de algumas leituras ainda não muito programadas, pretendo reler dois dos meus livros favoritos da vida, “Grande Sertão: Veredas”, do João Guimarães Rosa, que é O favorito (um dia eu falo dele), e “O Senhor dos Anéis”, do J.R.R. Tolkien, que eu considero como o livro que me tornou um leitor de verdade. Antes dele, eu já lia alguns livros, mas muito esporadicamente. Depois de tê-lo lido, no início da adolescência, passei a amar literatura.
Essa semana o Thiago Guimarães soltou um vídeo excelente (que é o padrão que ele segue) sobre “O Senhor dos Anéis”, uma leitura que ele refez no ano passado e observou uma série de questões raciais, que ele trata nesse vídeo abaixo. Inclusive, a edição dele é igual a minha;
Essa semana eu vi pela primeira vez o filme “Como Eliminar Seu Chefe”, no último encontro de um dos cineclubes do Sesc curados pela Isabel Wittmann, que eu recomendei em uma das primeiras newsletters. O filme é dirigido pelo Colin Higgins e estrelado pelo excelente trio Jane Fonda (também quero falar dela no futuro aqui), Lily Tomlin e Dolly Parton. O filme é ótimo, muito divertido e cheio de questões interessantes pra se discutir, especialmente sobre mercado de trabalho e a maneira como as mulheres estavam e estão inseridas nele.
Mas não é exatamente sobre o filme que quero falar, embora reforce a recomendação: assista. Só quero deixar mesmo a música “Nine to Five” (que é também o título original do filme), da Dolly Parton, porque desde que assisti ao filme na quinta-feira eu tô cantarolando ela o tempo todo.
Enfim, acho que por hoje é só. Me conta suas experiências com shows? Quais seus favoritos, o que você gosta, teve alguma experiência incrível? Vou adorar saber.
Um beijo e até a próxima!
Foto: Eddie Vedder, Pearl Jam. Drop in the Park, Seattle, 1992, de Lance Mercer. (lá no topo. E bem no topo, no caso)
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Vindo do hardcore punk eu já fui em alguns shows grandes, mas minha preferencia sempre foram shows menores, com mais contato com o publico e artistas e mesmo assim entendo muito bem a energia que você diz no texto.
Concordo demais de que o cinema não chega perto desse sentimento, acho que a unica experiencia coletiva que chega perto, para mim, é assistir o Corinthians no estadio.
Eu sempre AMEI a energia de shows! Acho que sim o sentimentos foi mto bem traduzido em texto!!! É exatamente isso!!!