#007 - Tudo é rio, tudo é sertão: Travessias
Às vezes dói ser alfabetizado; às vezes, cura
(Fingindo naturalidade como se não fizesse um mês desde a última newsletter)
Vou tentar ser um pouco objetivo e falar brevemente, sem spoilers, de dois livros: um que acabei de ler recentemente, e que odiei, e outro que comecei a reler, e que é o meu livro favorito da vida.
O primeiro é “Tudo É Rio”, da Carla Madeira, que narra uma espécie de triângulo amoroso envolvendo o casal Dalva e Venâncio com a prostituta Lucy, a puta mais cobiçada e orgulhosa-de-ser-puta da cidade. Essa história é entrecortada por dramas familiares, violência e uma pseudo-profanidade.
E faço questão de ressaltar o último item, porque ele é crucial para o desastre literário que é essa obra. Digo isso arriscando receber pedradas de quem amou, porque sei que muita gente amou, mas também sei que muitos odiaram (como eu). Acho que é um livro que começa muito bem, e a Carla Madeira merece elogios por conseguir nos prender logo de cara com uma escrita dinâmica, bastante enxuta e poética.
Cheguei a dizer no grupo de discussão que participo que via bastante influência de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa na escrita dela, porque de fato ela soube enxugar bem (no início) o texto e manter apenas o essencial, ao mesmo tempo que constrói frases curtas e potentes, com muito mais significado por trás delas do que o número de palavras usadas dá a impressão.
E nesse início do livro, especialmente, a autora nos instiga com um texto cru, visceral, nada pudico e bastante provocador. A impressão que dá, especialmente sendo seu primeiro livro, é de que talvez estejamos mesmo diante de uma grande autora.
Mas é preciso um pouco mais do que saber encadear palavras de uma forma interessante para ser grande. Conforme a história vai avançando, parece que ela se perde totalmente em sua escrita e a coisa desanda num nível que chegou a me dar a impressão de que o livro começou a ser escrito por uma pessoa e foi terminado por outra.
“Basta um descuido para quem está andando tropeçar”, diz ela em um trecho sobre outra coisa, mas que adapto aqui para o que quero dizer. Toda aquela escrita poética do início desemboca em um texto pobre e desinteressante, e numa história cheia de absurdos, de reviravoltas exageradas (pra não dizer sem sentido) e pior: num moralismo cristão conservador vagabundo de quinta categoria.
Não meço palavras: “Tudo É Rio” é uma desgraça.
Poucas vezes na vida me decepcionei tanto com uma leitura que comecei gostando. Mas antes o sentimento fosse só o da decepção. Eu acabei de ler com um sentimento de revolta mesmo. Eu tô inconformado até agora, como você pode perceber.
A Martha Medeiros, que é uma autora que nunca li (e que já passei a não ter vontade rs), escreve a orelha da edição que eu tenho, e ela diz: “Tudo é rio é uma obra-prima, e não há exagero no que afirmo. É daqueles livros que, ao ser terminado, dá vontade de começar de novo, no mesmo instante”.
Martha, ao terminar, e ainda agora, minha vontade era de botar fogo nesse livro, era de me desalfabetizar, se fosse possível, pra nunca mais ter a chance de ler algo tão desastroso e vagabundo em toda a minha vida. Eu tenho ímpetos de militar contra a educação, porque se alfabetizar pode ser perigoso. De repente um dia cai esse livro na mão de alguém alfabetizado, e aí? Vai ter valido a pena ter estudado tanto pra passar por isso? Se você usa “obra-prima” para descrever “Tudo É Rio”, qual é o termo que te sobra pra descrever…
Grande Sertão: Veredas
“Nonada.”
Aqui a coisa muda de figura. Assim que terminei a hecatombe literária acima (desculpe, se a Martha Medeiros pode usar “obra-prima”, eu me dou esse direito), embarquei nessa viagem de reler o livro da minha vida. Talvez só ele seja capaz de curar todos os males da leitura anterior. Há de.
É mais uma leitura que estou fazendo em conjunto, com parte do grupo que também leu (e em sua maioria também não gostou de) “Tudo É Rio”. Faz pelo menos 15 anos desde a última vez que o li completo. Nesse meio tempo, peguei algumas vezes para reler algumas passagens, ou iniciei, mas acabei não continuando por N motivos.
Eu não sei se sou capaz de dizer o que “Grande Sertão: Veredas” significa pra mim. É sempre difícil falar sobre algo que a gente gosta tanto e que é tão importante pra gente, porque por mais que a gente reúna palavras, elas não são suficientes pra descrever bem essas coisas.
A primeira vez que li foi ainda na adolescência. Foi a primeira obra do Guimarães com a qual tive contato. Antes mesmo de “Sagarana”, que por bastante tempo (não sei se ainda) foi uma das obras obrigatórias em vários dos principais vestibulares do Brasil. De modo que devo ter lido “Sagarana” com 17, 18 anos, e já havia lido “GS: V”.
Não é uma leitura fácil, mas eu sou dos que defendem que também não é tão difícil quanto parece. Especialmente porque, apesar da maneira peculiar de falar do protagonista, Riobaldo, e da grande quantidade de neologismos do Guimarães, é um livro de história simples, com personagens humildes, mas com muita profundidade. E que flui como um rio calmo depois de talvez as primeiras cinquenta páginas.
Riobaldo é um ex-jagunço, mas é também filósofo. Não de formação acadêmica. É um filósofo popular, formado pela vida. Sua maneira de falar é ao mesmo tempo simples, pelas analogias cotidianas e pela brevidade de cada um de seus pensamentos, e complexa, pela sua forma de estruturar a fala e pela profundidade das suas reflexões.
Nunca vi nada na minha vida tão bem escrito quanto o Riobaldo, suas falas e o livro que ele protagoniza. Isso é uma obra-prima. E com isso não quero aqui rivalizar com a Martha Medeiros, que tem todo o direito de ter achado “Tudo É Rio” uma obra-prima, afinal quem sou eu também pra contestá-la assim. Eu não tenho de newsletter escrita o que ela tem de livros publicados. Mas até pra isso o Riobaldo se expressa melhor do que eu: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães.”
Tem algo de mágico no texto de “Grande Sertão”. Talvez seja como olhar para o céu e enxergar sempre uma estrela nova, que você nunca tinha reparado que estava lá quando da leitura anterior. Riobaldo é um personagem que parece ter todo o conhecimento do mundo. Nada passa despercebido, e tudo o que passa por ele automaticamente ganha um encantamento.
"Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto".
E além de todas as belezas que a gente enxerga pelos olhos do Riobaldo, tem toda essa ideia de sertão, dessa imensidão a ser desbravada por nós, como foi por ele. O sertão, esses mundos: o de fora e o de dentro, afinal “o sertão é dentro da gente”. As travessias pelo desconhecido. Deus e o diabo. As amizades. O amor.
E Diadorim.
Mas eu não vou falar de Diadorim. Eu talvez nem saiba.
“Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina…”
Daí que esses tempos eu andei meio sumido, né? E eu poderia inventar desculpas mil, mas nenhuma é maior do que a realidade: a vida passa por cima da gente de um jeito às vezes que a gente não consegue anotar a placa e fica meio desnorteado por um tempo. Mas tá tudo bem, é só cansaço e meio sobrecarregado de vida mesmo.
Junto de “GS: V”, estou lendo “A Pediatra”, da Andréa Del Fuego. Assim que acabá-lo, provavelmente nesse fim de semana, devo começar a ler “Jóquei”, da Matilde Campilho, de poesia. Saudades de ler poesia. Esse ano ainda devo começar a releitura de “O Senhor dos Anéis”, assim que acabar o do Guimarães, e quero fechar com “Belo Mundo, Onde Você Está”, da Sally Rooney. Isso é o que está programado, possivelmente acabe encaixando algum outro livro do grupo de leitura que participo, mas vamos ver se será possível.
Enfim, dessa vez vai ser um pouco diferente: não vou deixar links, não vou dar dicas, mas quero saber o que você anda lendo, e se leu os dois livros que citei no texto (ou algum desses outros que quero ler), e o que achou. Me conta?
Um beijo e até a próxima!
PS: Se você quiser me presentear com uma edição que eu não tenha de “Grande Sertão: Veredas”, eu aceito. Inclusive edições gringas (pode se oferecer pra comprar pra mim também, e eu vejo de pagar). Quero colecionar todas as edições que eu encontrar.
Arte: Jagunço a Cavalo, de Aldemir Martins. (lá no topo)
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