#009 - Vá ao cinema, depois mate a famiglia
Se possível, veja "Marte Um" antes da eleição no domingo
O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.”“O homem; as viagens” – Carlos Drummond de Andrade
Essa deve ser a quinta versão dessa edição de newsletter que começo a escrever. Esses dias, uma amiga recomendou esse espaço pra seus seguidores e disse algo como “se você quiser receber textos bonitos (ou bem escritos, não me lembro), assine”. Eu vi que depois disso algumas pessoas assinaram. Sinto informá-los: provavelmente não será hoje.
Eu não tenho cabeça pra escrever. É como naquele meme de “Meninas Malvadas”: eu passo 80% do meu tempo pensando na derrota do Bolsonaro nas urnas, e nos outros 20% eu torço pra que alguém comente sobre o assunto pra eu poder falar também.
Faz quatro anos que a gente não tem um dia de paz. Não que vivêssemos plenamente antes disso, mas o que caiu sobre nós de quatro anos pra cá foi apenas dor e sofrimento e desespero e desesperança. E ódio. Deles e nosso. Eu não aguento mais sentir ódio. Eu era uma pessoa boa, eu acho, mas hoje eu só consigo sentir ódio. Ele me consome todos os dias. Eu sinto dores na mandíbula com alguma frequência porque me pego mordendo ela com força quando leio ou ouço falar sobre Jair Bolsonaro, família Bolsonaro, governo Bolsonaro. Eu tinha sonhos. Hoje eu só tenho ódio.
Há algumas semanas, assisti a “Marte Um”, um filme sobre sonhos. Sobre um Brasil que um dia ousou sonhar. É um filme feito com dinheiro de um edital de ação afirmativa para que cineastas pretos pudessem realizar suas obras. Só aconteceu uma vez. Foi o suficiente pra esse filme nascer, e hoje ele é o filme escolhido pra representar o Brasil no Oscar do ano que vem.
É um filme sobre a família de um menino de 13 anos que sonha em ser astrofísico. Mas seu pai sonha que ele seja jogador de futebol, se possível do Cruzeiro, time pelo qual torce. Deivinho, o menino, faz parte dessa família de classe média baixa de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ele tem medo que o pai brigue com ele se ele disser que não quer ser jogador de futebol, mas astrofísico.
A cena em que ele conta isso pra irmã mais velha me fez chorar no cinema como há muito não fazia. Chorei umas tantas vezes durante esse filme. Chorei com esse Brasil que é o Brasil que eu vivo e vivi a vida toda. Talvez o filme mais Brasil contemporâneo que já vi. Ao menos o Brasil contemporâneo dos municípios urbanizados, das famílias de classe média baixa, dos brasileiros que possuem sonhos e boletos em atraso. Que suspendem seus dramas pessoais nas cordas vocais de um narrador que grita um gol do seu time do coração. Deivinho é um Elon Musk com pai cruzeirense em vez de dono de uma mina de esmeraldas. Ele sonha em colonizar Marte (com engenho e arte?). Seu pai talvez dê um jeito.
“Marte Um” é a coisa mais linda que eu vi no cinema em 2022. E o sonho do Deivinho é o sonho que eu queria voltar a ter. Não exatamente de ser astrofísico, mas de conseguir imaginar algo que pode ser enxergado como impossível ou muito difícil e dizer “por que não?”. Os mais jovens talvez não se lembrem, mas antes de 2002 isso não era possível. A gente mal conseguia sonhar. Não era pra gente. Daí um dia foi. E não só foi como virou realidade. E de 2016 pra cá, se aprofundando ainda mais em 2018, tem deixado cada vez mais de ser.
Tem gente que não sabe o que é isso. Tem gente que $empre pôde sonhar e realizar. Mas milhões e milhões nunca puderam. Até que um dia passaram a poder, e realizaram. Mas de novo, não mais. Eu sei lá, você que ligue os pontos aí. Faz quatro anos que eu nem durmo, que dirá sonhar.
Veja “Marte Um”. Se possível, antes de domingo. E no domingo, faça a dificílima e dangerosíssima viagem de si a si mesmo: ponha o pé no chão do seu coração. Vote como se você pudesse sonhar. A gente pode. A gente vai voltar a poder. Eu só quero que tudo isso acabe logo. Eu não aguento mais chorar. Eu não aguento mais sentir ódio. Eu só quero sonhar.
"O caminho da felicidade ainda existe,
é uma trilha estreita,
é em meio à selva triste."Vida Loka, Pt. 2 - Racionais MC's
A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo divulgou justamente hoje, no dia de publicação dessa newsletter, o pôster da sua 46ª edição, que acontece entre os dias 20 de outubro e 2 de novembro. Ele é assinado pelo artista Eduardo Kobra, e se chama… “Volte a Sonhar”. Não é coincidência, é a realidade se/nos impondo. Doido, né? A gente vai voltar. Tá decretado: venceremos!
Por hoje é só.
Um beijo e até a próxima (que, eu espero, seja mais feliz)!
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