#014 - Queria ter um rio pelo qual eu pudesse patinar
Ou chove lá fora e aqui tá tanto frio
I wish I had a river so long
I would teach my feet how to fly
Oh, I wish I had a river
I could skate away on
I made my baby cry"River" - Joni Mitchell
Recentemente, voltei a trabalhar presencialmente em alguns dias da semana, e colocar isso na rotina, de pegar ônibus sempre no mesmo horário, com várias mesmas pessoas, nos faz reparar em algumas coisas que o home office e o período de isolamento durante a pandemia arrefeceram.
Era uma segunda-feira chuvosa na capital paulista. Também fazia um frio como há algum tempo não se via. Não era um frio insuportável, mas que somado à já citada chuva, me arrisco a dizer, fazia com que 101% das pessoas naquele ônibus, a começar pelo motorista e a terminar pelos passageiros do último banco, quisesse estar em outro lugar, mais quente, mais seco e mais confortável que uma lata de metal com muitas rodas e uma fina camada de água que embaçava os vidros.
Estava sentado em um dos bancos da frente, porém de costas para o sentido em que o ônibus se deslocava, naquele que costumo chamar de “banco dos destemidos”, porque é preciso certo grau de desapego com o improvável pra te fazer se sentar em uma posição em que você não veja a possibilidade de se proteger de alguma forma na iminência de um acidente ou coisa que o valha.
À minha frente, sentava a cobradora, no banco que toda criança um dia já quis se sentar, por geralmente ser o único de lado nesse tipo de transporte. De frente pra ela, de modo que se traçarmos linhas retas pareceria um L de ponta-cabeça, estava uma moça, aparentando seus trinta e tantos, com fones de ouvido e um olhar perdido de uma protagonista de romance que olha para fora do ônibus após uma desilusão.
É muito comum que em situações desse tipo, quando somos obrigados a permanecer parados em um único lugar, a gente eventualmente escolha algo ou alguém para quem nosso olhar sempre se volta automaticamente. Não importa o quanto a gente se esforce para olhar vagamente para outros lugares e pessoas, parece que o centro de gravidade do nosso olhar acaba fixo em alguém específico.
Nesse dia, meu olhar se voltava sempre pra ela, que tentava olhar pelo vidro embaçado do lado de fora enquanto ouvia algo em seu par de fones brancos. O que era? A música do momento ou alguma do passado? Um podcast de true crime ou as notícias do dia anterior? Algum áudio gigantesco de WhatsApp de uma amiga, de um amor, do pai com o qual ela não se relaciona há anos? Jamais saberemos.
A única coisa que pude perceber é que, entre a quinta e a décima nona vez em que meu olhar se voltou para ela, seus olhos estavam marejados. Comecei a perceber que ela fazia certo esforço nos músculos do rosto para segurar o choro, mas ele era mais forte do que ela era capaz de aguentar. Rapidamente, antes que uma lágrima escorresse pelas bochechas, ela levava as costas das mãos aos olhos e tentava socorrê-las. Fez isso inúmeras vezes.
Provavelmente ninguém que estava naquele ônibus nunca saberá pelo que ela chorava. A esmagadora maioria sequer percebeu ou tinha como vê-la chorando. Todos e cada um estavam presos em seus próprios pensamentos, e suspeito que pela manhã fria e chuvosa de uma segunda-feira desumana, pouco se importariam com o choro de uma desconhecida. Não posso sequer afirmar que eu mesmo estive preocupado de verdade. Apesar da cena triste, a situação parecia minimamente sob controle. Ou não era tão grave ou ela era mais forte do que eu imaginava. Porém, naquele banco, no ponto B da hipotenusa imaginária que tracei até ela, onde o ponto A era eu, a mim me pareceu que chovia mais dentro dela do que fora do ônibus.
Vez ou outra, desviava meu olhar para não parecer um assassino em série de um folhetim da Netflix, e sempre que retornava meu olhar em sua direção, ela seguia enxugando as lágrimas que teimam em querer escorrer. Em uma dessas vezes em que o ímã do meu olhar me puxou em sua direção, ela não estava mais lá. Provavelmente ela atravessou a catraca em um momento de fuga (meu? dela?) e saltou para a chuva que teimava em cair lá fora. Destemida?
Às vezes, a tempestade é dentro da gente. Às vezes, ela nos inunda e transborda, como um rio sem meandros.
A gente morre amanhã.
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Foram quase cinco meses sem newsletter. Não vou me desculpar por nada. Obrigado a quem perguntou se voltaria, a quem pediu para que voltasse, a quem não se deu o trabalho de desassinar, a quem recebeu, abriu e leu. A quem ainda me inspira. A Joni Mitchell. A quem carrega dentro de si uma tempestade ou um rio em que possa patinar. E não quero agradecer ao Lobão por nada.
Por hoje, é isso. Um beijo e até a próxima (se vier)!
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Arte (lá no topo): “Mulher chorando”, 1947, óleo sobre tela, de Candido Portinari. Recomendo que acessem o site do Projeto Portinari, no qual é possível ver uma infinidade de obras dele. Na busca pela pintura que usei aqui, ele me mostrou uma série de esboços, estudos e outras pinturas que ele fez de mulheres chorando. Não sei o que pensar, só sentir. Sintam.
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Carlitos, que bom receber texto teu... sempre! E eu vi que você deu um tempo no Twitter mesmo... Tá certo, lindo... sanidade mental é o que interessa! Beijoooooooooo
Carlos, eu juro que não me dei conta do tempo que você ficou sem publicar... coisas dessa vida louca com excesso de tudo. Mas não tem problema. Tá todo mundo fazendo o que dá, e isso que importa.