#018 - Tudo sob o sol está em sintonia, mas o sol está eclipsado pela lua
Mais um pouco sobre: shows, ser fã, opinar e (ainda) estar nas redes sociais
Eu pretendia fazer uma newsletter comentando sobre os shows do Roger Waters e da Alanis Morissette que vi recentemente, mas enrolei, enrolei e do nada a Taylor Swift veio, o mundo acabou no Rio de Janeiro, acabei indo ao show dela meio de supetão em São Paulo também, e os assuntos foram se atropelando, discussões sobre fãs e ídolos e responsabilidades e crimes e respeito etc. tomaram conta das redes sociais (saiam delas imediatamente!) e eu desisti de tudo (será?).
Pois é, amigos, foram muitas coisas que a minha vontade de “virgular” corretamente o parágrafo anterior foi por água abaixo. E daí me pego pensando que a quantidade de shows esse ano está tão absurda, e eu tenho ido a tantos também (que me levarão à falência) que nem sei se quero mais falar sobre eles. Ainda vêm aí: Primavera Sound, Titãs e Paul McCartney, tudo agora em dezembro. E vai saber se não vai surgir mais coisa em cima da hora.
Por falar em Paul McCartney, que já vi em uma das vezes que passou por aqui, você viu que ele fez um show para cerca de 200 pessoas no Clube do Choro, em Brasília? Imagina ter a chance de assistir ao Beatle assim, cara a cara, praticamente podendo tocá-lo com as próprias ‘mões’? Eu choraria mais que criança perdida dos pais, certamente.
É muito maluca essa coisa de ser fã, né? Mas também é uma coisa meio bonita, acho, especialmente quando se mantém de uma forma sadia, seja admirando a figura do artista ou, principalmente, a arte que ele cria. Fiquei pensando na época dos shows do Roger Waters o quão satisfatório é admirar a arte produzida por ele e também a pessoa e as ideias que ele defende. Mas não acho que admirar a obra precisa estar necessariamente ligado a admirar o caráter do artista.
Essa discussão se acalorou com a passagem da loirinha, aka teilor, pelo Rio de Janeiro, uma vez que muita gente ficou decepcionada com a postura dela de não comentar sobre a morte da fã Ana Clara Benevides em seu show. Não preciso relembrar o caso aqui, porque todo mundo sabe o que rolou, né?
O meu ponto é: não acho que a gente precise admirar a persona, o caráter ou a conduta de um artista para ser fã de sua obra. Talvez isso seja um tanto polêmico, mas não espero de artista nenhum que ele tenha uma moral inabalável (nem do Roger Waters), que aja corretamente em absolutamente todas as instâncias de sua vida, que ele defenda e pratique as coisas (que eu julgo) certas. De novo, é legal se isso acontece, mas não vejo exatamente um problema em admirar o trabalho de gente que sei lá, tem seus defeitos, suas contradições, seus demônios. (Obviamente não estou falando de apoiar o trabalho de criminosos e de gente que usa a arte para propagar ideias absurdas).
No fim, são pessoas como nós. E mais: não espero de artistas que eles tenham a cabeça totalmente no lugar, porque acredito de verdade que boa parte do que a gente considera boa arte vem justamente das mentes mais desgraçadas. “Ai, meu deus, ele está passando pano para a teilor suífte!”. Bitch, sit down! Isso aqui não é a rede social da saúde mental onde você falaria essa bobagem, então seja humilde.
O materialismo histórico dialético (risos) me ensinou que a gente lida com a realidade material, e a realidade é esta: pessoas têm defeitos, têm contradições, erram, fazem merda e muitas vezes não são os seres mais humanos que a gente pode querer que elas sejam. Ainda assim, ninguém está impedido de admirar as coisas admiráveis, celebrar a obra etc., especialmente se a sua relação com ela vai além da relação das pessoas que não são fãs e que não criaram laço sentimental algum com ela. A nossa relação com a arte, por mais que a gente tente racionalizar, é intrinsecamente emocional e até inexplicável em muitos casos.
Dito isso, vi bastante gente se dizendo decepcionada com a Taylor Swift (e não tiro a razão), outras desistindo dos seus shows ou indo com aquele gosto amargo e um pouco de “culpa” (a gente precisa se livrar do cristianismo mesmo, né?) de gostar da obra de alguém que, por não ter feito uma homenagem, não ter cancelado o segundo show na hora que as pessoas queriam, não ter TALVEZ procurado a família da fã na hora que as pessoas queriam, praticamente foi sentenciada pelo tribunal da rede social da saúde mental como cúmplice do assassinato da própria fã. Vamos com calma, seus Sérgio Moro do Twitter (X rs).
E aí esse papo todo me deu uma preguiça enorme, porque ele me lembrou que as redes sociais existem e que as pessoas existem nelas com um comportamento que não necessariamente é o comportamento que elas têm na vida real. Já passou da hora de a gente aceitar que as redes sociais deram errado. É isso, gente: a internet é uma das coisas mais incríveis já criadas, mas as redes sociais deram errado. Foram legais por um tempo, mas a gente (se) estragou tudo. Tá tudo bem a gente deixar pra lá e tentar construir outros espaços pra gente na internet.
Essa história toda, do dia pra noite, transformou todos os especialistas em conflito apartheid no oriente médio em especialistas em mudanças climáticas, em gerenciamento de risco, em direitos do consumidor, em organização de grandes eventos etc. De novo: vamos com calma. A gente não precisa ter opinião sobre tudo, condenar ou absolver tudo e todos a todo momento. A gente também pode só dizer “puts, que merda” e seguir a nossa vida sem se sentir mal por não ter emitido a nossa indispensável opinião. (Disse aquele que está usando sua newsletter para opinar).
E mesmo que a gente tenha as nossas opiniões, precisa ficar claro que não estamos nas mesmas condições de temperatura e pressão que os envolvidos na história para saber o que está se passando, como as coisas estão sendo tocadas e o que dá ou não para ser feito em determinada situação.
É muito fácil no conforto do nosso lar dizer no Xuíter que algo x ou y deveria ser feito, que o show deveria ser cancelado imediatamente, que a cantora deveria botar a foto da fã morta no telão e fazer uma homenagem, quando na verdade não estamos em uma sala com pelo menos uma dezena de advogados de mais de uma dezena de empresas, cada uma tentando defender o seu, e com o relógio girando e outras 60 mil pessoas que te admiram se dirigindo a um estádio para assistir ao seu show sem que você queira decepcioná-las também.
E o mais importante de tudo: uma fã sua saiu de casa para viver um momento inesquecível curtindo a sua música e ela nunca mais vai voltar pra casa porque ela morreu no meio de tudo, por incompetência dos envolvidos na produção do evento, mas também por uma circunstância climática para a qual (obviamente ficamos sabendo depois) ninguém estava preparado (mas deveria). Nenhuma atitude traria a vida dela de volta. E eu não consigo nem imaginar como é ter que lidar com todas essas coisas, mas com certeza o @cleitinho48265 no Xuíter sabe perfeitamente. Ele tem a receita para a paz em Gaza, para resolver a morte de uma pessoa em um show com outras 60 mil pessoas e para o pudim de Natal (aguarde, estamos começando dezembro).
Há muitas formas de ser fã de um artista, e muitos tipos de fãs, mas ao mesmo tempo parece que há um fio que liga a todos de forma inconsciente. Foi no mínimo interessante assistir aos shows do Waters, da Alanis e da Taylor em poucos dias e notar as diferenças de público. No primeiro, uma variedade enorme de faixas etárias, mas majoritariamente homens. No segundo, uma predominância de mulheres na casa dos 30+ e no terceiro, muitas mulheres 35- e meninas superjovens.
Em todas essas apresentações, o que me pareceu comum foi como claramente as pessoas se emocionam com seus artistas favoritos, como se relacionam com as suas músicas e como dentro de suas cabeças deve haver um universo inteiro que só aquela pessoa conhece e que teve em algum momento da vida a trilha sonora que ela pode apreciar ao vivo naquele exato instante, junto com outras dezenas de milhares de pessoas com seus próprios universos particulares, compartilhando da mesma energia coletiva.
Talvez o choro de um senhor na casa dos sessenta vendo um Beatle a dois metros de si seja movido pelo mesmo tipo de sentimento que me fez chorar copiosamente em “Wish You Were Here”, quando Roger Waters homenageia Syd Barrett e nos fala sobre a fragilidade e a finitude da vida, e o mesmo que talvez tenha feito tantas mulheres na casa dos trinta e poucos chorarem enquanto gritavam a plenos pulmões “You Oughta Know”, da Alanis Morissette, ou uma adolescente em “Love Story”, da Taylor Swift.
Ser fã é muito bom. Não tenha medo ou vergonha de ser. Ruins são as redes sociais, saiam delas imediatamente.
Um beijo e até a próxima!