#020 - Do que eu falo quando eu falo de cuidar de si mesmo
Porque mais ninguém poderá fazer isso por nós, e que bom
“Para seguir em frente, é preciso manter o ritmo. Isso é o mais importante em projetos de longo prazo. Assim que você estabelece o ritmo, o resto vem a reboque. O problema é conseguir fazer com que a roda fique girando a uma determinada velocidade — e chegar a esse ponto exige o máximo de concentração e esforço de que a pessoa é capaz”.
Haruki Murakami, em “Do que eu falo quando eu falo de corrida”
Era fim de outubro de 2015. Eu acabara de assistir ao filme “A Floresta que se Move” no cinema do Shopping Frei Caneca, no bairro da Bela Vista, na região central de São Paulo, e precisava subir rápido até o metrô Consolação, na avenida Paulista, a tempo de chegar até o metrô Barra Funda e pegar um ônibus para Caieiras, na região metropolitana, onde eu morava.
Quem já fez esse trajeto, especialmente durante a Mostra de Cinema de SP, sabe o quanto ele exige das nossas pernas e do nosso fôlego, principalmente se o intuito é chegar rápido lá em cima, a tempo de mais uma sessão. Mas eu não tinha outra sessão cinema. Eu só tinha a iminente perda do último ônibus de volta para casa, o estômago meio vazio de uma alimentação desregrada para o período de Mostra e um par de pulmões de centavos.
Por uns breves minutos, achei que aquela noite seria a minha última. Subi a Frei Caneca o mais rápido que pude, mas perto de chegar ao cruzamento com a Paulista eu praticamente não conseguia mais puxar o ar. Somado a isso, minhas canelas doíam demais pelo esforço. Por alguns segundos, senti que tinha entrado em alguma espécie de transe, porque fui desacelerando o passo contra a minha vontade. Eu só pensava “acelera esse passo, Carlos!”, e o corpo fazia exatamente o contrário. Até que me encontrei parado, apoiado em uma parede, sem entender direito se eu tinha apagado. Suponho que não, senão teria caído, mas imagino que apaguei uma parte da consciência. Cheguei a aceitar que perderia o ônibus aquele dia e que não voltaria para casa aquela noite. Esse era o melhor dos cenários, porque também achei que fosse ter um treco no meio da rua e encerrar por ali minha participação em qualquer mostra de cinema.
O ano era 2020, o mês era março. O mundo todo sabe o que aconteceu nesse mês. Eu tinha quase cinco anos a mais que no começo desse relato, provavelmente quilos a mais também, mas uma coisa liga esses dois períodos entre si, assim como a vários outros pontos da minha vida em que qualquer esforço físico um pouco maior era acompanhado de uma falta de ar absurda e a sensação de quase morte: uma bronquite que carrego comigo desde a primeira infância.
Em 2020, não sabíamos quase nada sobre a Covid-19, o coronavírus, e o que seria daquela pandemia. Mas uma das primeiras coisas que aprendemos foi que a doença afetava muito forte e com muita velocidade os pulmões das pessoas infectadas. Dezenas de milhares, depois centenas, depois milhões de pessoas morreram no mundo todo afetadas pela doença, outras milhões ficaram com sequelas. Mas foi nesse começo de 2020 que decidi que começaria a fazer o que estivesse ao meu alcance naquele momento para evitar que, caso me infectasse, tivesse menos complicações por conta dos meus pulmões.
Comecei a caminhar no quintal de casa, poucos minutos todos os dias. Aos poucos, fui introduzindo um trote leve, que mal passava de um minuto, sendo sempre interrompido por muita falta de ar. Eu parava, descansava e tentava mais um pouco. Mais falta de ar. E aí eu parava. No dia seguinte, quase sempre, estava lá de novo. Até que meu fôlego foi aumentando, junto com o tempo que conseguia caminhar e correr sem achar que pudesse morrer a qualquer momento. Não lembro exatamente quanto eu caminhava e corria, mas eu fazia por volta de uma hora de exercícios todo dia, sendo talvez uns 30 minutos de corrida leve, por cerca de um ano e meio.
Mas aí eu me mudei, “perdi” o quintal onde fazia minhas atividades e fiquei praticamente dois anos sem me exercitar.
É muito maluco ter a cabeça cagada. Sempre fui gordo, a vida toda, e de alguma forma sempre pensei que fazer exercício não era pra mim. Há muitos anos, em um antigo blog, escrevi sobre como é ter a cabeça de uma pessoa gorda, que acha que está sendo o tempo todo observada e julgada pelas pessoas, pelo que come ou deixa de comer, por fazer ou não atividades físicas, pelas roupas que veste ou pelas que tira.
Todas essas coisas são impedimentos para que a gente não se cuide. Aliás, vou um pouco além, e peço perdão se parecer confuso ou ambíguo: não se permitir se cuidar é uma maneira que a gente encontra de cuidar de si mesmo. Porque sim, o mundo é hostil com pessoas fora do padrão, a gente se sente julgado também porque é muito julgado, e se sente mal porque as pessoas nos tratam mal. “Desaparecer” da vista das pessoas é uma forma que a gente encontra de fugir da hostilidade travestida de piada, de um comentário sarcástico, de um olhar enviesado, de um sorriso de canto de boca.
Falando especificamente dos exercícios, não praticar atividades físicas em público às vezes é uma forma de não ser visto e possivelmente julgado pelos outros. Não ir à academia, é evitar estar exposto a um ambiente que não parece convidativo a quem não gosta de ficar admirando o desenho do próprio corpo na frente do espelho, porque o mundo nos diz diariamente que o corpo admirável é qualquer outro, menos o que você tem. Eu estive lá, nesses cenários todos em que a gente não se sente confortável em ser, em existir. Tenho me esforçado para não estar mais.
Em 2020, comecei a me exercitar porque tive medo de adoecer e morrer de uma doença que ninguém sabia direito o que era. No fim de 2023, voltei a me exercitar porque quero ter uma vida com mais qualidade, mais longeva e também porque acho que encontrei as atividades físicas que me deixam feliz, que me fazem entender que meu corpo pode fazer coisas que eu achava que não conseguiria, ou que o mundo me disse, às vezes de forma velada, às vezes não, que eu não seria capaz de fazer.
Eu não sei o que vai sair disso tudo. O que eu sei é que tenho tentado um pouquinho por dia, todos os dias, até chegar lá. Eu ainda não sei onde é lá, mas meu desejo pra 2024 é que seja aguentar 5 km correndo. Se não der, tudo bem, o que eu conseguir já terá sido meu recorde.
Um punhadinho de dicas legais
No livro “Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida”, o escritor (e corredor) Haruki Murakami fala (além de corrida rs) muito sobre essa coisa de manter uma rotina, uma frequência de atividade para atingir um objetivo, seja ele e ela quais forem. Como ele escreve e corre, ele traça paralelos entre ambas as coisas, mas você pode encontrar inspiração em suas palavras para quaisquer que sejam os seus objetivos. Calma, ficou parecendo que é um livro de autoajuda, mas ele não tem absolutamente nada a ver com isso. Vai lá ler e depois me conta o que achou;
A escritora e pesquisadora Ana Rüsche começou recentemente uma nova newsletter sobre corrida de rua chamada “A vida e a corrida”, vale conferir;
Desde muito antes de pensar em começar a praticar exercícios a sério, comecei a acompanhar o canal do Diego Paladini, professor de educação física, chamado “Saúde na Rotina”. Ele é didático, divertido, responsável e fala de saúde e de como introduzir exercícios físicos na sua vida sem que isso seja chato. O mais legal de tudo: ele dialoga muito bem com a “pessoa normal” que quer começar a se exercitar, não só com quem já tem verve de atleta;
Uma das pessoas que eu gosto de ler e acompanhar na internet é a Jess Correa, ela é editora de vários podcasts que você deve conhecer, mas também tem uma newsletter, a “Entre um Chocolatinho e Outro”. Nessa publicação aqui, ela fala um pouco sobre praticar muay thai (que eu ainda quero experimentar um dia) e descobrir que pode fazer coisas que ela um dia sequer soube que podia. Assim como o Diego e a minha namorada (que também está comigo nesse desejo de correr 5 km em 2024), a Jess tá sempre falando sobre encontrar o exercício físico que te agrade, pra que você consiga constância;
Aqui um vídeo legal e curtinho do Dráuzio Varella falando sobre ter corrido a Maratona de Londres em 2022, e completado o circuito das seis principais maratonas do mundo aos 79 anos. O Dr. Áuzio (risos) começou a correr aos 50 anos. Ainda dá tempo, né?
Eu descobri que o “Roots”, do Sepultura, é um disco excelente pra quem está começando a correr. Ele tem a dose de raiva ideal para os dias em que você não está tão motivado e precisa se exercitar na força do ódio, e tem uma cadência perfeita para você manter um ritmo constante. Fica aqui de indicação final na temática corrida;
Minha namorada, também conhecida como a mulher que eu gosto™, entre muitos talentos, também possui o do enfileirar palavras de forma bonita. Para dar vazão a isso, ela acabou de criar uma newsletter aqui no substack também, chama “Coluna da Rosana”. Clica aí, lê, assina e receba as próximas edições.
Que 2024 seja leve para todos nós, mas caso ele seja pesado, que a gente tenha força para passar por ele como as quilhas que cortam as ondas daquele poema do Maiakóvski.
Um beijo e até a próxima!
Além de vídeo, acho que o Dr. Áuzio tem um livro sobre corrida, né? Pra fazer companhia ao do Murakami. Acho que o fundador da Nike também fala disso em algum livro, do hábito de correr. Mas aí é capitalista safado, melhor deixar quieto.
Eu vim justamente recomendar a newsletter da Ana mas que bom que cheguei tarde.