Recentemente, mais precisamente no fim do ano passado, li o bom livro da jornalista Natalia Viana, diretora da Agência Pública, sobre sua experiência tendo sido a responsável na América Latina por ajudar a distribuir e divulgar os vazamentos do WikiLeaks, sua relação com a organização, com outros jornalistas estrangeiros e daqui, e, principalmente, com o controverso e complexo Julian Assange: “O Vazamento: Memórias do Ano em que o WikiLeaks Chacoalhou o Mundo” (ed. Fósforo, 2024). Vale bastante a leitura, fica a recomendação.
Esse texto não é sobre o chamado Cablegate, o vazamento de telegramas diplomáticos dos EUA que revelou ao mundo o que o país pensava sobre o resto do globo. Esse início, que aproveito para indicar a leitura do livro da Natalia, é apenas um breve contexto de onde tiro a citação abaixo, que me chamou atenção durante a leitura especialmente por reacender uma fagulha de romantismo ao jornalismo que vez ou outra me atinge.
Escreve a autora:
“Há uma definição de jornalismo investigativo que eu adoro, do repórter americano T. D. Allman, ex-correspondente internacional da Vanity Fair que revelou a guerra secreta da CIA contra os comunistas no Laos. Para ele, o jornalismo de verdade é aquele que não apenas apura os fatos, mas ‘compreende o significado dos acontecimentos’.”
Eu, machucado pela profissão, vivo diariamente o dilema de acreditar nas funções sociais dela, mas de duvidar do jornalismo praticado pela maior parte dos veículos, especialmente os maiores e mais ricos, que me parecem servir muito pouco a quem deveriam: ao povo. Todos os dias, conseguiria separar uma infinidade de exemplos que me fariam desistir do ofício se tivesse outra forma de ganhar a vida, ou se a gente não dependesse exclusivamente do trabalho para (sobre)viver.
Ao mesmo tempo, me deparar com exemplos como o da citação acima reacende essa chama que me fez um dia achar que valeria a pena entrar nessa área, porque ela é, sim, nobre, e pode ajudar a transformar a sociedade e a dar uma vida mais digna às pessoas. O problema é que os maus exemplos acontecem em uma quantidade muito maior do que os sopros de esperança.
Essa semana, por exemplo, rolou isso aqui:

“Agora não tem como ficar mais claro do que isso. Com certeza o jornalismo vai apurar o fato e ser capaz de compreender o significado dos acontecimentos, né?”, muitos devem ter pensado, na esperança de que o jornalismo fosse capaz de propagar aos sete ventos quão à direita a extrema-direita pode ir. Aí o menino autoproclamado jornalismo vai lá e…
Das principais notícias destacadas pelo Google reportando o gesto nazista do nazista Elon Musk, apenas uma cita que o gesto nazista é um gesto nazista. Todas as outras giram em torno da #ESPECULAÇÃO de que o gesto nazista era semelhante a um gesto nazista, ou que o bilionário nazista estava sendo acusado nas redes sociais de fazer uma saudação nazista. Como se a internet tivesse tirado do próprio ânus uma interpretação persecutória para o inocente gesto que um dos autoproclamados homens mais inteligentes do mundo teria feito. Ele não sabe o que significa esse gesto, né?
Tudo isso aconteceu ao vivo, na cara do mundo. Musk fez e refez o sinal. O bilionário com tendências autoritárias que comprou uma rede social apenas para transformá-la em um enorme outdoor para ideias da extrema-direita mundial, permitindo que todo tipo de discurso de ódio não apenas possa circular livremente, mas que seja propagado ao maior número de pessoas possível, estava apenas entusiasmado comemorando o sucesso de seu führer chefe, saudando sua vitória. Em alemão, há um termo exatamente para isso: “sieg heil”.
Me parece que esse tipo de saudação teria origem romana, mas segundo a Wikipédia — que é mais confiável que a maior parte da grande imprensa —, há quem reivindique o gesto como uma saudação dos antigos povos germânicos. O que de fato interessa, nesse momento, é deixar registrado apenas o que todo mundo já sabe: que o sieg heil foi incorporado pelo partido nazista alemão como forma de cumprimento a Adolf Hitler, adaptado por Joseph Goebbels, seu ministro da propaganda, como “Heil Hitler” (”Salve Hitler”, em bom latim).
Goebbels era um dos “homens fortes” de Hitler e do nazismo, responsável por usar as mídias sociais, especialmente o rádio, para propagar ao maior número possível de pessoas todo tipo de discurso de ódio, mas especialmente o antissemitismo.
Voltando ao papel (de trouxa) do jornalismo…
Tem uma anedota que ouvi na universidade (e que provavelmente todo mundo da área também ouviu) que discorre contra a “mania” do jornalismo declaratório, que na maior parte das vezes coloca na boca de terceiros aquilo que ele não teve coragem (ou competência) de noticiar por conta própria. É algo mais ou menos assim: “o bom jornalista não pergunta à pessoa x ou à pessoa y se está chovendo. Ele abre a janela, olha pra fora e vê se está caindo água do céu”.
O que isso quer dizer, caso não tenha ficado claro? Que profissional dotado de um cérebro mais ou menos em funcionamento, de acordo com a bagagem que adquiriu ao longo de toda a sua existência na face da Terra, é capaz de dizer por conta própria ao menos o que é mais óbvio, sem a necessidade de se esconder atrás de “suposições”, para não se comprometer, ou de “especialistas”, para dar um ar de seriedade.
Voltando ao nazista…
Em seu parque de diversões nazista, após ser acusado de ter feito um gesto nazista, o bilionário nazista disse: “O ataque de que ‘todo mundo é Hitler’ é tãããão cansativo”. Ele se referia à mesma coisa que a imprensa decidiu destacar em suas manchetes, de que ele “teria sido atacado nas redes sociais” pelo gesto nazista que fez. Tadinho, tão injustiçado.
Mas não dá pra dizer que todos concordam com essas acusações, uma vez que o bilionário nazista também recebeu bastante apoio, como o de grupos neonazistas que celebraram no Telegram o gesto nazista que ele fez na posse de Trump. É como aquela outra anedota do velho Brizola: “Se algo tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré, pé de jacaré, olho de jacaré, corpo de jacaré e cabeça de jacaré, como é que não é jacaré?”.
Mas concordo, Elon, nem todo mundo é Hitler. Alguns são Horácio, outros Himmler, uns tantos são Göring ou Mengele. Fato é que parece que Trump encontrou seu Goebbels, que lhe ajudará a escrever uma outra história americana, como naquele filme…
todo dia o menino jornalismo fazendo a gente passar raiva