Morte e vida na América Latina
Este não é um texto sobre Gabriel García Márquez ou João Cabral de Melo Neto
“Lá fora, no pátio, os passos, como de gente que ronda. Ruídos calados. E aqui, aquela mulher, de pé no umbral; seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através dos seus braços, fiapos de céu, e debaixo de seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o chão debaixo dela estivesse inundado de lágrimas. E depois o soluço. E outra vez o pranto suave mas agudo, e a dor fazendo seu corpo se contorcer.
— Mataram seu pai.
— E quem matou você, minha mãe?”
“Pedro Páramo”, de Juan Rulfo.
Olá, como vai você?
Esse é um período em que muita gente gosta de postar seu “top qualquer coisa” do último ano. Filmes, livros, discos, shows, músicas, restaurantes, viagens etc. Cada um escolhe a(s) área(s) de atuação que possivelmente tem como hobby (ou trabalho) e compartilha sua lista de indicações com seus amigos, seguidores, leitores, ouvintes etc.
Eu mesmo faço isso de tempos em tempos. Às vezes tenho mais paciência, outras, tenho zero, como agora. Mas gosto de ver as listas dos amigos, de pegar referências, de entender por que eles gostaram de algo, por que recomendam e tudo mais. Gosto dessa coisa de curadoria, já deu pra perceber, né? Em tempos de algoritmos que ditam o que a gente vai consumir, quanto mais personalizada for a recomendação, mais interessante. Não é ótimo saber de alguém que tem sangue correndo nas veias o que faz o coração dela acelerar?
Ando numa fase (que não ouso chamar de minimalista) em que a quantidade tem me interessado pouco, embora eu siga registrando as coisas que leio, vejo, frequento. Eu poderia fazer uma lista com os melhores livros que li esse ano? Poderia. Isso interessaria de verdade a alguém? Talvez a uma meia dúzia de três ou quatro pessoas. Mas tenho pensado no quanto pode parecer mais eficaz, de repente, escolher um número menor dessas “coisas” e dar a essa escolha (ainda que não faça um grande aprofundamento nela) um caráter mais destacado.
Há alguns anos (não sei quantos), descobri por um vídeo no youtube o livro O Deserto dos Tártaros, do italiano Dino Buzzati. Tive imediata vontade de comprar e ler. Devorei, amei. Por bastante tempo ficou sendo uma recomendação que eu sempre dava como certeira se alguém me pedia sugestão de algo pra ler. Sabe quando a gente abre essas caixinhas no Instagram escritas “me indique um livro”? Provavelmente, se você fez isso nos últimos anos, eu te indiquei O Deserto dos Tártaros. Mas não é sobre ele esse texto, cito porque talvez você já esteja deduzindo que o livro italiano ganhou um “rival”, e que devo substituí-lo nas próximas recomendações (talvez pelos próximos anos?).
Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, me sacudiu na reta final de 2024. Foi o último livro que concluí no ano que acaba de acabar, e o único que repeti a leitura nesse mesmo ano, logo em sequência. Até 2024, confesso que não conhecia nem a obra e nem o autor. Deixando patente a minha ignorância, vim a descobrir que Pedro Páramo é (ao que tudo indica, quase indiscutivelmente) a principal obra literária do México. “Apenas” isso. De todo modo, a mim ela chegou primeiro pela indicação de um livreiro em um sebo no centro de São Paulo.
Ultimamente, ando frequentando muitos sebos e livrarias com a mulher que acelera meu coração, e num desses passeios me deparei com uma edição antiga de Sagarana, do Guimarães Rosa, que acabei comprando. Ao passar no caixa, o rapaz que trabalha lá me recomendou esse escritor mexicano que eu talvez pudesse gostar, porque ele tinha uma escrita (segundo ele) que se parecia um pouco com a do Guimarães. Ao menos, eu achava que era isso que ele tinha me dito, mas depois de ler Pedro Páramo, eu não faria essa relação tão direta entre eles, então pode ser que ele tenha citado Rulfo porque ele e Guimarães teriam sido amigos de correspondência (informação que não chequei, então não confiem em mim).
Anotei no celular o nome do autor e do livro, e sempre acabava olhando em algum outro sebo quando visitava, mas calhou que nunca cruzei com nenhuma edição do livro. Corta para outubro passado, quando rolou a Mostra de São Paulo, e entre os filmes a serem exibidos no festival estava um tal de Pedro Páramo, produção da Netflix. Novamente o nome se reavivou na minha mente, me deixando mais uma vez em estado de alerta para a obra. Vi o filme? Ainda não. Como alguns sabem, eu odeio filmes (#ProjetoDeLaurinhaLero).
Mas acho que por conta justamente do lançamento do longa, dirigido por Rodrigo Prieto (atual diretor de fotografia de Marin Scorsese), Pedro Páramo ganhou uma nova edição da José Olympio, e acabei sendo gentilmente agraciado com uma cópia. Sou especial? Obviamente que não, eu só escrevo pra um grande veículo de imprensa e no último ano comecei a assinar alguns textos com dicas culturais, de modo que entrei no radar de editoras e ando recebendo bastante coisa. Nem falei disso por aqui, mas que seja, nem sei se quero falar no momento, porque o texto não é sobre isso.
Pois bem, Pedro Páramo entrou meio de supetão na reta final de leituras de 2024 também por ser um livro curto, que eu andava precisando para poder retomar o hábito, depois de uns meses meio corridos e sem leituras muito fluidas. Somou-se a isso o interesse pelo livro aumentado após ouvir um episódio do podcast 30: Minutos.
Como eu já vinha ensaiando há algum tempo a releitura de Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez — que talvez seja uma das primeiras leituras de 2025, também por conta de uma obra da Netflix, dessa vez série —, achei que seria ótimo mergulhar mais no realismo mágico antes de adentrar Macondo, e é isso que basicamente é o livro de Rulfo. Talvez não dê pra cravar que seja a pedra fundamental desse gênero super latino-americano, mas certamente foi uma das obras que ajudou Gabo a se encontrar nesse universo encantado, e a construir sua obra-prima. O próprio disse isso: “A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”.
Outra referência do realismo mágico/fantástico, dessa vez vindo da Argentina, Jorge Luis Borges diz sobre Pedro Páramo: “Um dos melhores romances das literaturas de língua hispânica, e mesmo da literatura”.
Não sou crítico literário, nem resenhista, e esse texto não tem outro desejo senão o de apenas te recomendar uma obra que me descaralhou a ponto de ler duas vezes em quatro dias. É dessas que te prende de um jeito que você pensa “o que tá rolando? Que maluquice é essa? Não sei se tô entendendo, mas tô amando!”. Ao final da primeira leitura, eu era o próprio meme da Nazaré refletindo sobre o que tinha acabado de ler.
Imediatamente, soube que queria reler, e já no dia seguinte recomecei, sem titubear, e mais uma vez fui pego em cheio. Fui entendendo melhor algumas partes, outras segui sem entender direito. Mas talvez tenha gostado ainda mais, a ponto de achar que deveria ler uma terceira vez em sequência, pois me parece dessas obras que você vai descobrindo suas nuances a cada reencontro, mas me controlei. A lista de leituras é enorme, então é melhor fazê-la andar.
Ainda quero ver o filme, que ouvi algumas pessoas falando bem, e confesso que embora o trailer tenha me deixado esperançoso, fico me perguntando como será que fizeram para adaptar um livro tão maluco estilisticamente? Enfim, é só dar play no streaming e descobrir, mas ainda não encontrei o tempo necessário somado à disposição necessária, mas devo fazer isso em breve.
Para não me estender ainda mais nessa recomendação, segue uma brevíssima sinopse sobre a história: no leito de morte de sua mãe, um rapaz atende a um pedido dela e promete que irá até a cidade de Comala para encontrar seu pai, Pedro Páramo. Lá, ele encontra (será?) muitas mais coisas e pessoas, em cenários tão estranhos quanto (ir)reais. E mais, não digo. Deixo que Juan Rulfo o faça:
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.
Minha mãe me disse. E eu prometi que viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu decidido a prometer tudo. ‘Não deixe de ir visitá-lo’, recomendou ela. ‘O nome dele é assim e assado. Tenho certeza que ele vai gostar de conhecer você.’ Então não tive outro jeito a não ser dizer a ela que faria isso, e de tanto dizer continuei dizendo mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para se safarem de suas mãos mortas.
Antes ainda, ela tinha me dito:
— Não peça nada a ele. Exige o que é nosso. O que ele tinha de ter me dado e não me deu nunca… O esquecimento em que nos deixou, filho, você deve cobrar caro.
— Vou fazer isso, mãe.
Mas não pensei em cumprir minha promessa. Até que agora comecei a me encher de sonhos e a soltar as ilusões. E assim foi se formando em mim um mundo ao redor da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Páramo, o marido da minha mãe. Por isso vim a Comala.”
Em resumo: muitas obras são, definitivamente, de arte, cada uma em sua área e a seu modo. Mas quando a gente se depara com uma OBRA-PRIMA… aí, amigos, a gente tá falando de outro patamar. É bom demais quando a arte mostra o seu tamanho. Tão grande que imensurável. Vai sem medo, mas depois volta aqui pra me dizer o que achou dessa maluquice.
Um beijo, um abraço e um grande 2025 pra todos nós.
PS: se você foi um leitor atento, percebeu que eu disse que Pedro Páramo foi o último livro que concluí em 2024, de modo que comecei outro que ainda não terminei. Ainda na vibe do realismo mágico, fazendo um esquenta para adentrar a Macondo de Gabo, estou lendo a (curta) Obra Completa, de Murilo Rubião, autor brasileiro que também é um dos precursores do gênero no nosso continente. A gente morre amanhã, mas sendo latino-americanos, quem sabe não temos outra chance por aí.