O progressismo e a grande imprensa são coniventes com Pablo Marçal
Perderemos, até que a gente aprenda e pratique: chapéu de fascista é cadeira
“Se você tem mais medo da mudança do que da desgraça, você não impede a desgraça.”
Da peça “Andorra”, de Max Frisch
Desde que Pablo Marçal saiu de piada nas redes sociais (ora ora, vejam só) para pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, há uma certa conivência com sua candidatura, quando não uma explícita cumplicidade, partindo de forças que consideramos “progressistas”, e isso me deixa indignado, embora não surpreso.
Ao que me parece, essa condescendência se dá especialmente em nome da audiência e de um suposto antagonismo que visa menos liquidar o protofascismo crescente na figura do ex-coach condenado e mais em surfar uma onda de engajamento na qual a direita e a extrema-direita nadam de braçadas há mais de uma década — e o chamado “campo progressista” se afoga a olhos vistos pelo mesmo período.
A imprensa tradicional, desde o início da pré-candidatura de Marçal, tem dado cada vez mais espaço a ele, aos seus discursos, às polêmicas que ele cria, ao caos que ele instaura dentro do processo eleitoral — que já é um jogo de cartas marcadas —, e que ele capitaliza muito bem principalmente nas redes sociais, produzindo cortes e mais cortes de vídeos em entrevistas e debates, e inventando tudo quanto é tipo de mentira (e fake news, mas não vou entrar no mérito dos termos) para se apresentar como uma alternativa contra a “política tradicional”.
Não é de hoje que grande parte da população segue decepcionada com essa política tradicional, e obviamente a direita tem se aproveitado disso fazendo política com antipolítica. Trump, Bolsonaro, Dória e agora Marçal, todos eles, em maior ou menor grau, se apresentaram como “não políticos”, ao menos não políticos da maneira tradicional, que é de quem as pessoas parecem cansadas, uma vez que a política tradicional “fracassou” em lhes dar uma vida minimamente digna.
Ao contrário dos “políticos tradicionais”, Marçal se vende como um cara bem-sucedido, que não precisa da política para enriquecer, e que isso seria suficiente para comprovar que sua “vontade de contribuir” não é outra coisa senão altruísmo. Ele é “competente” e rico, de modo que pode usar de sua “bondade” para ajudar a melhorar a vida das pessoas mais pobres. Por que não dar uma chance a ele, uma vez que a política tradicional sempre prometeu o mesmo e nunca cumpriu? Ao menos, que se tente “algo novo”. Não precisa ser muito inteligente para deduzir que boa parte do pensamento dos eleitores segue mais ou menos por essa linha, que não é de toda errada. Errada está a esquerda que não soube usar disso como a direita tem feito. Porque no fim a direita não traz nada de novo, mas até aí não seria muito diferente do que “todo o resto”, então que mal faz tentar?
De todo modo, não deixa de ser uma loucura esse discurso da prosperidade que o Marçal literalmente vendeu nas redes sociais e que agora traz para a política tradicional, e como isso convence com muita facilidade as pessoas. É um misto de teologia da prosperidade neopentecostal com discurso meritocrático liberal faria limer. Mas se engana quem pensa que apenas essas duas forças trabalham para fortalecer o surgimento de figuras como Marçal.
Toda vez que a imprensa tradicional legitima a candidatura farsesca desse cidadão, toda vez que ela aceitou recebê-lo para entrevistas, sabatinas e debates, toda vez que ele não foi desmascarado ao vivo durante essas aparições públicas, todas as vezes que ele “melou” o jogo com suas provocações dignas de um bully de quinta série, e todas as vezes que ele conseguiu uma breve reação de qualquer adversário, ele venceu. Venceu sobre seus adversários e venceu sobre nós, eleitores.
Mas a imprensa não saiu derrotada, porque no fundo a audiência está sedenta por esse tipo de figura “outsider” que tem coragem de bater de frente com a política tradicional. E ele é um sucesso nas redes sociais desde antes da campanha, de modo que a cartada do “interesse (do) público” até pode ser usada para justificar o espaço dado a ele, mascarando que o real interesse é apenas em aumentar sua audiência para conseguir mais publicidade etc. Toda vez que a imprensa valida a participação de um cara que deliberadamente participa do processo justamente para destruir o processo, ela é cúmplice. Mas não é a única.
Toda vez que a ala progressista, seja da centro-direita limpinha, da centro-esquerda-que-é-meio-direita, e da centro-esquerda-que-é-só-centro-mesmo-não-existindo-centro tenta vencer na “base das ideias” quem tá jogando o jogo do caos, ela é conivente com o comportamento da extrema-direita fascista que tomou conta da política em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil.
O que me deixa mais absurdado, confesso, é que, apesar dessa extrema-direita vir destruir o sistema como a gente o conhece, quando ela vence, trabalha para se manter dentro desse sistema e fortalecê-lo ainda mais, porque ela entendeu que o povo a chancela, então ela não precisa se insurgir contra a população. Ela aprendeu a vencer no voto, pois ganha voto no grito. É isso que irrita a “direita-não-tão-fascista” mais do que irrita a esquerda e a esquerda radical, porque o fascismo está tirando voto da “direita não-tão-fascista”, porque a única coisa que os diferencia é a coragem de dizer “eu quero a sua destruição, sim”, que é o que uma tem e a outra, não, embora ambas pratiquem.
A maior prova disso é que o maior enfrentamento que Marçal tem recebido não é de quadros mais alinhados à esquerda, como Guilherme Boulos, mas sim de quem trafega entre a centro-direita e a direita conservadora, tipo Tabata Amaral, Ricardo Nunes e Datena, que o enfrentam com muito mais veemência que o candidato dito radical que fica brincando de trocar pulseirinha da amizade e fazer meme com bolo. Enquanto a esquerda pensa que o correto é moderar sua radicalidade, ser não-tão-radical-e-mais-fofo, porque isso tenderia a convencer mais a população de que ele não vai tomar sua casa, a direita-não-tão-fascista está literalmente dando cadeirada na cabeça de fascista.
Há uma década e meia, o “progressismo” segue acreditando que moderar o discurso e não enfrentar de frente, com coragem e combatividade, vai fazer com que as pessoas “percam o medo da esquerda”. O pior de tudo é saber que geral parece ter medo de uma esquerda que mal existe. Sério, a coisa mais radical que o Boulos fez nessa campanha foi fingir que jogaria um bolo na cara de uma pessoa de brincadeira em um vídeo de campanha. E nem de brincadeira ele foi capaz de literalmente fazer isso. Sim, o programa “Passa ou Repassa”, do SBT, é mais violento que a nossa esquerda apontada como radical.
O processo do “Boulinhos paz e amor” segue a mesma cartilha já feita na campanha de Lula em 2002, quando foi eleito moderando cada vez mais seu discurso. É certo que, à época, essa limpeza de imagem do (suposto) radical Lula serviu para lhe garantir a eleição, e colhemos muitos bons frutos até hoje dos primeiros governos petistas, a questão só é que essas conquistas também não vieram sem um custo altíssimo. No fim, a realpolitik petista ajudou a fortalecer a direita, que acabou culminando também na extrema-direita. Não acho que seguir o mesmo caminho vá dar em algo muito diferente dessa vez.
Quando digo tudo isso, não é para expressar que meu desejo era de que toda a esquerda pegasse em armas e saísse dando picaretada na cabeça de fascista. Longe de mim incentivar esse tipo de coisa, quem me conhece sabe, risos. Mas entre decapitar o adversário e fazer campanha trocando pulseirinha da amizade TEM QUE TER um meio do caminho que faça essa galera temer pela vida ter vergonha de ter saído do esgoto que saiu.
Parece que a gente não aprendeu absolutamente nada com tudo o que a gente viveu a partir de junho de 2013. Uma eleição presidencial que por muito pouco não foi perdida no voto, outro pleito municipal em que a esquerda saiu rechaçada pelo povo e que foi capitaneado pelos outsiders “contra todos que estão aí”, um golpe de Estado que derrubou uma presidenta com a chancela das instituições, outra eleição presidencial manchada pela ascensão e vitória da extrema-direita. Nem mesmo atravessar uma pandemia com um governo eugenista e mais de 700 mil mortes que poderiam ter sido evitadas nos ensinou nada.
Seguimos na imprensa chocando mais um ovo de serpente; seguimos na esquerda sem a coragem de dar cadeirada na cabeça de fascista reconhecer que a extrema-direita acerta justamente quando joga para destruir o jogo e as instituições, e que nós deveríamos perder o medo de defender o mundo que gostaríamos de (vi)ver, porque achamos que “o povo” não vai entender que não devoramos criancinhas e que queremos o bem para a maior parte dele.
A meu ver, — e posso ser contradito por alguém e não terei vergonha alguma de reconhecer se estiver errado — não é o povo que não entende que a esquerda quer o bem dele, mas a esquerda que não entende o que o povo quer que ela faça, e quais são as reais necessidades desse povo. Então esse mesmo povo não é “enganado pela extrema-direita”, ele só está dando a ela a chance de atender às suas necessidades, reconhecidas em falsas promessas, e porque ela tem oferecido os meios que esse mesmo povo acredita ser o mais correto, porque ele atende às suas indignações. A gente está tentando atender no racional o que o povo está nos dizendo no emocional. Isso foi compreendido pela extrema-direita, mas a gente segue em negação.
Eu não sei quem vai vencer a eleição em São Paulo, se Boulos, Nunes ou Marçal. O que eu sei é que, independentemente do resultado das urnas, a maior parte do povo seguirá derrotada por um bom tempo. Sigo sem ver a luz no fim do túnel que indicaria a morte da extrema-direita e do fascismo. Ele provavelmente não morre amanhã, ao contrário de nós.
Paz entre nós, guerra aos senhores.
Eu sei, eu sei… meses sem publicar nada e tudo mais. A vida tem dessas coisas. Perdi a chance de falar sobre um monte de coisa que passou pela minha cabeça e que acabou não virando texto, e muita coisa aconteceu desde a última newsletter, tipo o fim do Twitter no Brasil. Que tenha sido o primeiro passo para o fim das redes sociais como a gente as conhece.
Espero conseguir postar com mais frequência, mas não garanto nem prometo.
Por hoje é isso, um beijo e até a próxima.
Artes: “A Cadeira de Van Gogh com Cachimbo” e “A Cadeira de Gauguin”, de Vincent van Vogh, 1888. Óleo sobre tela.
“Lênin Proclama o Poder Soviético”, de Vladimir Serov, 1947.
Demorei 10 dias pra ler este texto porque ta tudo uma loucura e o capitalismo (nos) venceu. Concordo muito com tudo que vc disse
AAAAAAAAAAAAAAAH ESTAMOS DE VOLTA!!!!!! corretíssimo, beibe<3