“Muitas vezes, eu fiquei sozinho
E muitas vezes, eu chorei
De qualquer forma, você nunca saberá
As tantas formas que eu tentei”“The Long and Winding Road” - Paul McCartney/The Beatles
Nem sempre as coisas são fáceis. Apaga. Quase nunca as coisas são fáceis. Falta um complemento. Para algumas pessoas, quase nunca as coisas são fáceis. Parece melhor. Não, não parece. E se eu inverter a lógica? Para algumas pessoas, quase sempre as coisas são mais difíceis. Já não sei mais, muitas possibilidades, e embora todas elas sejam bastante diretas com o que quero expressar, nenhuma parece de fato contemplar exatamente o sentimento. Apaga tudo, deixa pra lá.
São tempos difíceis para os sonhadores. (Não é uma merda quando algumas frases já estão tão batidas que é impossível não vê-las sendo citadas completas quando na verdade a gente só queria dizer uma parte? Tipo "humano, demasiadamente humano". Sério, todo mundo que escreve com alguma frequência já escreveu essa frase alguma vez em algum texto, porque soa inteligente, ainda que você nunca tenha lido Nietzsche, maldito seja!)
Mas vamos lá, dizia eu (que a aritmética… CHEGA! Quem foi maior, Nietzsche ou Roberto Gómez Bolaños?) que as coisas não andam fáceis. O caos, meus amigos. Inclusive esse protótipo de texto, como podem ver. Se acalmem, não estou sob efeito de um poderoso psicotrópico. Eu não transo drogas. Talvez devesse. Eu talvez só esteja doente. Esse país me adoece. A todos nós.
Mas não vou discorrer aqui sobre os males do mundo, porque vocês não estão em coma e nem vivendo em outro planeta, de modo que sabem bem a desgraça que as coisas estão (elas sempre estão, mas de 2016 pra cá a desgraça ganhou um cheiro de podridão ainda maior, se é que vocês me entendem). Eu não vou falar de como as coisas estão no mundo, no Brasil etc. Chega, Carlos!
Vamos lá, as coisas andam difíceis por aqui. Socorro, quinto parágrafo e nada foi dito ainda. É assim que muita gente ganha a vida, acredite. Sendo um grande gerador de lero-lero. Na literatura, no cinema, em outras áreas. E algumas delas enganam muito bem. Provavelmente a gente já foi ou segue sendo enganado por algum farsante assim. Muitos têm até fãs, pasmem! Mas enfim…
Tá puxado! Tem dia que não dá de jeito nenhum. E aí a gente insiste, porque é preciso tentar, mas não tem força nem pra tentar muito também. Mas aí tem dia que dá. Mas são bem raros. Ultimamente não tem dado, não. É uma sensação meio bizarra, e ela deixa a gente meio imobilizado. E aí o tempo passa e de repente… outro dia. E a gente vai colecionando dias como quem coleciona conchas coleciona conchas, aos montes.
Mas quando dá, é sucesso. Dá uma sensação gostosa. Pequenos prazeres de deveres cumpridos. Mas com a maior parte desses deveres as pessoas simplesmente não se importam, porque são coisas realmente banais. Tipo tirar o lixo, ou dar uma organizada na mesa ou ver o fundo da pia.
Nesses dias que dão, às vezes dá até pra escrever. E aí eu penso "olha só, rolou!", e publico. E daí o desespero bate. A maior parte das pessoas não vai ler, eu sei disso, porque eu sou uma dessas pessoas também com os textos de outras. E isso é um pouco triste. Mas outras vão ler. E aí bate aquela vergonha em ter nascido, porque tendo nascido, eu fui educado e alfabetizado e passei a ter vontade de escrever, e de publicar, e aí tem a síndrome do impostor: "tá uma merda!", "as pessoas vão achar ridículo", "você tá passando vergonha".
E volta e meia também vem aquela piada que é tão boa quanto cruel, e ela também não faz bem: "Será que você é bom o suficiente pra sofrer de síndrome do impostor?". Um soco na cara bem dado, né? Nariz sangrando e tal. Doido. Será?
Então é isso, nem sempre é fácil. Quase nunca é. E mesmo quando a coisa sai, ela faz sofrer na distribuição. Todo publicar vem acompanhado de um mini AVC. Eu saio, me distancio e ando com outros afazeres pra ver se esqueço que provavelmente estou sendo ignorado sumariamente ou passando vergonha na internet.
Eu tenho pavor de passar vergonha.
E eu acho que passo vergonha 100% das vezes.
No fim, talvez não passe tanto. E eventualmente uma ou outra pessoa alerta que isso é bobagem, ou levanta meu moral. Até nesses momentos a gente se sabota: "essa pessoa é sua amiga, ela só tá elogiando por educação, no fim tá uma merda mesmo, você tá passando vergonha!"
Naquela entrevista da Billie Eilish pro David Letterman que eu recomendei na newsletter #003, ela conta que sofre com isso. Ela diz que tem a sensação de que fingiu por tanto tempo que era uma celebridade que acabou se tornando uma. O David diz que entende e que se sente igual, que a qualquer momento vão bater no ombro dele e dizer “chega, acabou, né? Agora não dá mais”.
Eu não estou me comparando com David Letterman e Billie Eilish, pelo amor, hein! Essa é a única coisa que temos em comum, talvez. Eu podia ter um pouquinho do talento? Podia, mas não… eu tenho em comum a síndrome do impostor (se eu for bom o suficiente pra ter rs).
Mas a real é que é verdade. Não há qualquer conquista, qualquer elogio, qualquer coisa que deixe pessoas normais felizes que não chegue por aqui como “acho que não mereço”, “não sou capaz”, “as pessoas só estão sendo gentis”. No fim, é como se eu soubesse que eu sou um desses enganadores que falei ali em cima. Olha esse texto! Se você não desistiu no começo, no meio, ou sequer leu, tá tendo agora a prova dessa enganação.
Pra quem não sabe, eu escrevo no Google Docs, e esse parágrafo já está na quarta página de texto. Três já se foram e nada foi dito. Ao menos nada de interessante. Por que você continua? Por que eu continuo? Até quando esse jogo de fingir que me lê porque eu finjo que escrevo? Quantas páginas do “Dom Quixote” você poderia ter lido e não fez porque estava lendo um texto meu?
Será que com as minhas mais de 100 mil horas de internet (eu não fiz as contas, mas com mais de 20 anos nessa brincadeira, me parece um número bom a ser citado) eu escrevi quantos “Dom Quixote” em volume? Em qualidade, eu tenho certeza que menos setenta e quatro, no mínimo. Se um dia eu escrever um romance, o próprio Cervantes volta pra dizer “desculpa, gente, não era isso o que eu queria quando inventei esse negócio sem querer!”.
Exagero, né? Pois é assim que funciona a minha cabeça. Não queira estar nela. É escura, cheia de poeira e a gente se perde lá dentro tentando achar a saída. Às vezes alguma coisa, ou alguém, nos resgata. Nem sempre é possível identificar, porque está sempre meio suja de lama e do chorume que se acumulam por lá.
Eu comecei a escrever esse texto no celular (odeio), antes de dormir, deitado na cama. E estou terminando (?) no computador (amo), pouco depois de acordar (mentira, eu engavetei por semanas depois que escrevi a primeira versão e achei que estava passando vergonha), sentado. Eu não sei se hoje vai dar. Eu acordo depois do almoço, porque trabalho na madrugada e durmo pela manhã. Tá vendo a informação aleatória, inútil e desnecessária? Mas ela serve de base para: e como acordo tarde, já acordo com a sensação de que perdi o dia. Então talvez não dê mesmo.
Eu não sei como acabar esse texto, você já percebeu, né? Eu não sei nem como comecei, como continuei e agora estamos aqui, onde a quarta página já se foi. Você foi enganado, parabéns. Você talvez saiba como chegou até aqui. Eu não sei como cheguei até aqui. Nem sei como saio. Ninguém sabe. Estamos todos perdidos. Assim de saúde. A pandemia fodeu (ainda mais) a gente.
Desculpa por te fazer de cobaia de um exercício besta de escrita, que claramente não deu certo. Tá tudo bem se você quiser desistir. Ninguém é obrigado. Mas se você decidir continuar, pode ficar tranquilo que eu vou tentar fazer o meu melhor. Ainda que às vezes o meu melhor seja uma bosta. rs
Uma mão cheia de dicas na sua cara
Tenho conversado bastante sobre música com uma amiga que mora na França, sobre as coisas que gostamos, o que temos ouvido, e o que ouvimos que nos leva a conhecer outros projetos. O fato de gostarmos de Dave Matthews Band, por exemplo, fez com que ela me apresentasse uma outra banda, que por um período teve em sua formação um dos músicos da DMB.
A banda se chama Béla Fleck and The Flecktones. O Béla Fleck é o líder da banda, e toca banjo (quem toca banjo é banjista? Banjoísta? Eu não vou pesquisar, quero morrer com essa dúvida), e ela mistura jazz, fusion, bluegrass, rock progressivo… sei lá como definir o som desses doidos. Sei que é bem legal. Eu ainda não consegui ouvir a discografia toda (são muitos álbuns), mas tô gostando de conhecer.
A primeira música do primeiro álbum, autointitulado, se chama “Sea Brazil”, e em algum momento ela traz umas influências de choro (o chorinho, gênero musical). É bem bom, e se você gosta de trabalhar ouvindo música, é ótimo, porque é instrumental. Deixo aqui um vídeo do que dizem ser a primeira apresentação ao vivo da banda, em 1988 (que todo mundo sabe que foi há 10 anos), porque vídeos ao vivo são sempre os mais legais, embora nem sempre a qualidade visual seja das melhores. Essa música tem uma gaita muito delícia.
O Paul McCartney está fazendo 80 anos no dia em que essa newsletter chega no seu email. Eu não vou falar muito dele, mas saiba: ele é meu Beatle favorito, e sou uma pessoa muito feliz de já tê-lo visto ao vivo.
Eu adoro a versão abaixo de “Golden Slumbers”, do “Abbey Road”, com os vocais isolados. Você pode encontrar muitas músicas de muitos artistas assim, é uma ótima forma de apreciar melhor as vozes de quem tá cantando. Eu amo essa música e como o Paul destrói nesses vocais. O momento em que ele rasga a voz no refrão e ao mesmo tempo ainda mantém um “vibrato” (ai, ele manja!) com a voz rasgada é de arrepiar.
No ano passado, saiu no Disney+ o documentário “The Beatles: Get Back”, dirigido pelo Peter Jackson, que tem quase 8 horas, divididas em três episódios, dos besouros em estúdio durante as gravações do “Let It Be”, oficialmente o último álbum deles lançado, porém o penúltimo gravado, quando a coisa já tava pegando fogo e os caras começavam a querer matar uns aos outros.
Eu fiquei completamente encantado com esse material, porque adoro bastidores de estúdio (podem me recomendar outras coisas desse tipo), e ver como funcionava o método de trabalho desses caras é uma coisa hipnotizante. E bom, o Paul era o único homem ali de fato interessado em fazer o trabalho acontecer, mas há excelentes momentos de todos eles, e quando a coisa funcionava entre eles, a química era mágica, como podemos ver na última apresentação ao vivo da banda, no terraço do prédio da Apple (a gravadora). Assista e me agradeça, ou agradeça ao Peter Jackson, que resgatou mil horas e material, restaurou e tratou (especialmente o áudio) pra trazer uma experiência única pra gente. Absurdo de lindo!
Também há uma outra série maravilhosa, e que acabou sendo ofuscada pelo lançamento de “The Beatles: Get Back”, que é “McCartney 3, 2, 1” (está disponível no Star+, o streaming adulto da Disney). Em seis episódios, o Paul conversa com o lendário produtor Rick Rubin sobre várias das composições dos Beatles.
Imagina dois caras fodas brincando com alguns instrumentos e uma mesa de som, comentando sobre algumas das canções mais famosas de todos os tempos, que a gente cresceu ouvindo. O Paul explicando como algumas músicas foram compostas e gravadas. Os dois estão soltos, é total papo de amigo e puts… que delícia!
Ainda nesse campo da música, essa semana começou um dos meus festivais de cinema favoritos: o In-Edit, de documentários musicais. Nesse ano, a edição é híbrida, ou seja, presencial e online. Vale dar uma conferida na programação no site e ver o que você pode assistir. Há vários títulos de graça, pelo que vi.
Por enquanto, assisti a apenas dois filmes (online): “Belchior – Apenas um Coração Selvagem”, sobre o cantor, e “Murder in the Front Row”, sobre a cena de thrash da Bay Area, em São Francisco, do início dos anos 1980. Gostei e recomendo ambos. Belchior é um dos meus artistas brasileiros favoritos, poeta incrível, e seu álbum “Alucinação” é uma obra-prima; e pra quem curte metal (como também curto), o segundo filme é um documento bem legal de um dos movimentos mais importantes do gênero, que pariu entre outras bandas Metallica, Slayer, Exodus, Megadeth, Anthrax, etc. Enfim, tem bastante coisa legal no In-Edit, não seja besta de perder!
Acho que é isso: desculpa qualquer coisa, aprecie as recomendações e cuide da cabeça, pra não acabar igual a mim.
Um beijo e até a próxima!
Arte: Velho Triste (‘No Portão da Eternidade’), de Vincent van Gogh. (lá no topo)
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Saudades de ler um texto assim, daqueles que a gente faz pela pura vontade (ou desespero) de escrever. Continuemos com nossa síndrome de impostor. Abraços!