#003 - A alma sufocada de areia
Um pouco sobre Isabel Allende e o orgulho de ser latino-americano
Atenção! Não há spoilers sobre a obra citada. Pode ler sem medo. E será assim sempre. A ideia é gerar interesse sem que se estrague a experiência.
"Estou com a alma sufocada de areia. A tristeza é um deserto estéril"
Isabel Allende
Dias atrás, na primeira edição desta newsletter, citei que um dos livros que estava lendo era “Não Aceite Caramelos de Estranhos”, da escritora chilena Andrea Jeftanovic. O outro, que finalizei neste fim de semana, também é de uma chilena (nascida no Peru), a mais renomada delas, Isabel Allende.
Há pouco mais de um mês, comecei a leitura de “Paula”, livro que Isabel escreveu durante o processo de coma pelo qual passou sua filha, que dá nome à obra, entre 1991 e 1992, e que nasceu com o intuito da autora de registrar suas memórias, e a de sua família, pra que a filha pudesse ler quando se recuperasse.
Junto das memórias familiares, Isabel também descreve como tem sido a rotina da internação de Paula ao longo de vários meses em um hospital em Madri, e posteriormente em sua casa, na Califórnia. Sem pudores, e com muita poesia e bom humor, a autora não só nos permite compartilhar de suas dores pela incerteza da recuperação da filha, como generosamente nos revela mais sobre a história da sua família, que se confunde também com a história do próprio Chile.
Prima de segundo grau do ex-presidente Salvador Allende —a quem considerava como um tio—, suicidado1 pelo Golpe Militar em 11 de setembro de 1973, Isabel se viu obrigada a sair do país após a ascensão da ditadura de Pinochet, mas não sem antes ter colaborado para ajudar um sem número militantes chilenos que tentavam resistir ao golpe.
Quando a situação política se tornou insustentável, já uma figura pública relativamente conhecida no país por sua carreira no jornalismo e na TV, e ostentando um sobrenome que colocava sobre ela um alvo enorme, Isabel se viu obrigada ao autoexílio, onde viveu especialmente na Venezuela, mas também com passagens por Espanha e EUA, onde mora até hoje.
“Paula” é um relato muito íntimo e angustiante, seja por conta do drama do então presente, com a doença da filha de Isabel, ou por várias das memórias familiares que ela compartilha. E é interessante notar o quanto essa angústia (entre outros sentimentos partilhados no livro) possui uma aura latino-americano muito forte.
Soa óbvio dizer isso, uma vez que ela é latino-americana, mas suponho que seja algo que leitores de outras partes do mundo possam não notar ou não dar a atenção necessária. E me arrisco a dizer que até mesmo nós, enquanto brasileiros, com todas as nossas contradições e muitas vezes com a dificuldade de nos enxergarmos latino-americanos, talvez deixemos passar essa latinidade na escrita e nas histórias da Isabel.
Ao contar a sua história, a de sua filha e a de sua família, a autora também conta a nossa, a de nosso continente e das nossas famílias. Ao mesmo tempo, suponho que para as leitoras mulheres o impacto da escrita da Isabel seja ainda mais forte, pois também é carregada de uma porção de características intrínsecas à mulher sul-americana.
"Esfumaram-se as fronteiras da realidade, a vida é um labirinto de espelhos opostos com imagens distorcidas"
Isabel Allende
Particularmente, como é um tema que me interessa muito, é difícil não me sentir tocado especialmente pelas passagens em que ela fala sobre as questões políticas chilenas. Do pré-golpe e ao golpe em si, e também o que resultou a partir dele. E ver alguns dos fatos narrados por alguém tão próxima do olho do furacão deixa a coisa toda ainda mais especial.
Foi o primeiro livro que li da Allende, mas pretendo/preciso ler outros, inclusive o primeiro e mais renomado, “A Casa dos Espíritos”, que nasceu a partir de uma carta de despedida dela para o avô, prestes a morrer aos 99 anos.
Ao que me parece, boa parte da sua obra tem esse caráter memorial (além do realismo mágico), e tendo vivido o que viveu, é impossível que ela não seja carregada de um caráter político muito grande. E nesse caso, também é impossível não cair no senso comum de acabar se lembrando de outros autores latino-americanos com as mesmas características em suas obras.
Há muito o que se descobrir ainda sobre a América Latina, e de uma forma ou de outra estamos todos conectados, seja pelas veias abertas dessa região do continente, mal citando Eduardo Galeano, ou pela flecha de pedra que atravessa implacável nossa alma, como a Cordilheira dos Andes.
Leia os latino-americanos, não há ninguém melhor do que eles para escrever sobre nós mesmos, sobre as nossas memórias, e sobre as dores que as metáforas do parágrafo acima nos lembram. Eles também não nos deixam esquecer os responsáveis por esses traumas.
"Apesar de ter chegado ao mundo em Lima, sou chilena; venho de "uma longa pétala de mar e vinho e neve" como Pablo Neruda definiu meu país, e de lá você também vem, Paula, apesar de ter a marca indelével do Caribe, onde cresceu. Para você, fica um pouco difícil entender nossa mentalidade do Sul. No Chile somos determinados pela presença eterna das montanhas que nos separam do resto do continente e pela sensação de precariedade, inevitável numa região de catástrofes geológicas e políticas. Tudo treme sob nossos pés, não conhecemos a segurança, se nos perguntam como vamos, a resposta é "sem novidades" ou "mais ou menos"; nos movimentamos de uma incerteza para outra, caminhamos cautelosos numa região de claro-escuro, nada é preciso, não gostamos de confrontos, preferimos negociar. Quando as circunstâncias nos impelem a extremos, despertam nossos piores instintos e a história dá uma guinada trágica, porque os mesmos homens que na vida cotidiana parecem mansos, quando contam com a impunidade e com um bom pretexto, costumam se transformar em feras sanguinárias. Mas em tempos normais chilenos são sóbrios, circunspectos, formais e sentem pânico de chamar atenção, o que para eles é sinônimo de fazer um papel ridículo. Por isso mesmo eu tenho feito a família corar de vergonha".
Isabel Allende
Uma mão cheia de dicas na sua cara
Patricio Guzmán é o maior documentarista chileno, e o considero o maior do mundo vivo. Ele chegou a ser preso pela ditadura de Pinochet e passou 15 dias no Estádio Nacional. Pouco antes, no entanto, conseguiu filmar os principais acontecimentos do país nesse período, tendo registrado o exato momento em que o golpe se consolidou. Suas filmagens foram transformadas em uma trilogia que é uma obra-prima, chamada “A Batalha do Chile”.
Guzmán conseguiu sair do país um pouco depois do golpe e se exilou na Europa. Há muitos anos mora em Paris, e dedica sua vida e sua obra a registrar a memória do povo chileno, da ditadura militar e das dores causadas pelo regime. Veja qualquer filme seu. Tudo vale a pena.
Quem também foi preso, torturado (teve as mãos esmagadas) e morto, foi o cantor Victor Jara, que também era membro do Partido Comunista Chileno (e faço questão de frisar, pra que não se apague a história e pra que a gente se lembre de quem são os perseguidos). Ele passou vários dias no Estádio do Chile, que foi transformado em um campo de concentração, e quando foi morto, seu corpo foi descartado na rua em Santiago.
Em 2019, durante as manifestações contra o governo do então presidente do Chile Sebastián Piñera e que pedia, entre outras coisas, por uma nova Constituição, no lugar da Constituição do Pinochet, manifestantes cantaram suas músicas pelas ruas do país, especialmente “El Derecho de Vivir en Paz”.
Nas mesmas manifestações de 2019, uma imagem rodou o mundo pela beleza e pelo seu significado. Uma foto tirada pela atriz chilena Susana Hidalgo no centro da capital, Santiago, mostrava manifestantes ao redor de uma estátua, muitas bandeiras do Chile e um manifestante no topo desse monumento, com os braços abertos, empunhando uma bandeira do povo indígena Mapuche. Uma ótima lembrança de quem é verdadeiramente originário desse continente.
Essa imagem foi liberada de direitos pela autora, e ela compartilhou o arquivo em alta qualidade para que possa ser usado por quem quiser, sem fins lucrativos. Ela foi chamada de “Re-evolución”.
“O povo unido enfrenta anos de abuso. Justiça, dignidade e humanidade erguem seus braços, suas vozes e bandeiras de luta para o horizonte, ansiando pela grande vitória”.
Pra finalizar, saio um pouco do tema Chile e América Latina, para recomendar duas outras coisas. Vou falar de Harry Styles mais uma vez. É a última por um tempo, me desculpem. Sei que ele foi citado já em 100% das newsletters que enviei. haha
O jovem acabou de lançar seu terceiro álbum, “Harry’s House”, e pela terceira vez fez um trabalho excelente. Ele é brabo mesmo, a real é essa. Deixo abaixo um vídeo dele cantando no programa do Howard Stern a faixa que por enquanto é a minha favorita desse disco, “Boyfriends”. E olha quem tá ali cantando com ele, a Ny Oh, que recomendei na newsletter #001.
Na news passada, recomendei o Finneas, irmão da Billie Eilish, e disse que ele talvez fosse um Harry Styles melhorado. Também disse que era um ótimo produtor, e olha só que legal. A Billie foi a primeira entrevistada da nova temporada do programa do David Letterman na Netflix, “O Próximo Convidado Dispensa Apresentações”. Além da ótima entrevista com ela, há um momento em que ele visita o estúdio dos dois, e o Finneas mostra um pouco de como foi construída a música “Happier Than Ever”, pra mim a grande canção de 2021.
Acho que é isso: leia Isabel Allende e os latino-americanos; ouça Harry Styles; assista Patricio Guzmán e o David Letterman; e alimente o orgulho latino-americano.
Um beijo e até a próxima!
Arte: Meus avós, meu pai e eu, de Frida Kahlo. (lá no topo)
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Há duas versões sobre a morte de Salvador Allende. Quando o golpe estava em curso, o exército chileno bombardeou o Palácio de La Moneda, sede da presidência, e Allende se recusou a sair de lá, resistindo bravamente até o fim. Uma das versões sustenta que ele teria sido morto após a invasão das tropas, mas a aceita oficialmente é a de que o próprio Allende teria se suicidado com uma arma que ganhara de Fidel Castro. Em 2011, o corpo do ex-presidente chileno foi exumado e a perícia concluiu que o ferimento a bala que o matou “corresponde a suicídio”. Optei por usar o termo “suicidado” porque, se não fosse pelo Golpe de Estado, Allende seguiria vivo e trabalhando pelo povo chileno.