#017 - E assim se foram los Aires Buenos
O corpo voltou, mas um pedaço do coração ficou na esquina da Borges com a Soler
Y me gusta pensar que nos vamos a encontrar
En la esquina de Cabildo y Juramento
Ya di vuelta toda la ciudad, regreso al mismo bar
Otra vez se hace de día en un momento“Cabildo y Juramento” - Conociendo Rusia
Dale!
Já faz pouco mais de um mês que a viagem a Buenos Aires, citada na edição anterior dessa cartinha, aconteceu e ainda não sei se sei bem que Buenos Aires descobri. Foram muitos passeios, visitas a lugares turísticos e outros nem tanto assim. Muitos alfajores e medialunas depois, e também uma infinidade de quilômetros caminhados (que ajudaram a queimar as calorias consumidas), sinto que talvez o que a capital portenha deixou comigo e em mim seja mais etéreo que palpável.
Talvez não exista lugar algum no mundo que seja assim ou assado, da maneira x ou y, definitivamente. Todos eles prescindem de alguma interação com quem está nele, e cada pessoa terá a sua à sua maneira. Uma cidade é um organismo vivo, mas Buenos Aires me parece ainda mais cheia de vida. Antes da minha viagem, uma amiga (beijo, Raíssa) me disse que Buenos Aires é uma cidade pulsante, que você sente essa pulsação e que ela te abraça. Não errou.
Os argentinos me pareceram muito abertos e simpáticos em praticamente todas as interações. Não importa a qualidade do seu castellano (leia-se castechano rs), eles se esforçarão para te entender e para serem entendidos. Nesse sentido, são muito parecidos com a gente. Dizer que é brasileiro, aliás, facilita a conexão: “Me gusta mucho Brasil…”, “yo fui a San Pablo una vez”, “las playas son muy lindas en Brasil” etc.
Bebe-se e come-se bem, em grandes quantidades e com baixo custo (para turistas). Obviamente por conta da desvalorização do peso argentino o país tem recebido gente do mundo inteiro, mas especialmente brasileiros, então é natural que eles também estejam mais abertos a nos receber, porque é importante manter a economia girando. O que não quer dizer que eles não pareçam sinceros em suas interações. Tive boas conversas com alguns locais sem que houvesse qualquer espécie de interesse econômico envolvido.
Caminhar pelas ruas é tranquilo, é tudo muito plano e o clima (fomos eu e a mulher que eu gosto™ durante a primavera) é gostoso. No sol é calorzinho, mas o vento é gelado, então à sombra dá tranquilamente para estar vestido com um casaco leve. Às vezes é necessário. Se você não tem preguiça de andar, a cidade te convida a passear o dia todo caminhando.
É impressionante a quantidade de cafés na cidade. Eles realmente levam isso a sério. Isso e livrarias. No entanto, não é tão barato comprar livros na cidade, mas é curioso como ainda assim a quantidade chama atenção. Tem livraria dentro de bar, dentro de café… e café e bar dentro de livrarias. Não sei o quanto os argentinos leem, mas eles gostam de livros, definitivamente, e de cafés. Eu já disse isso?
Em quase toda rua há um, ou mais. Às vezes há um café ao lado de outro, e de todos os tipos: simples e clássicos, hipsters ou de grandes redes… na maioria deles, grãos brasileiros e colombianos reinam. Não sei se na Colômbia há tantas cafeterias assim (eu e a conja queremos ir até lá checar rs), mas definitivamente o Brasil fica muito atrás. Também não deve haver em nenhum desses lugares um Café Cortazar, com itens originais do escritor e com as paredes cheias de fotos e pinturas em sua homenagem, ou um London City, o café que o próprio frequentava e que citou em algumas de suas obras, e onde hoje há uma estátua sua sentada em uma de suas mesas.
Há algo meio mágico no quanto os argentinos parecem respeitosos com suas figuras históricas. Não sei dizer se é apenas o meu olhar de turista, que com certeza existe e influencia nesse tipo de leitura, mas há neles um senso de preservação e de celebração que vai além da mera homenagem à figura x ou y. É quase como se expressar esse respeito fizesse deles mais quem eles são de verdade.
No segundo dia de viagem, estávamos em um passeio pela feira de antiguidades de San Telmo, e num determinado momento uma mãe com um filho pequeno passou por nós e pude ouvi-la perguntar à criança se ela gostava da Mafalda, personagem do Quino, e recebeu como resposta algo como “claro! Se não gostasse, não poderia ser argentino”.
Tem algo aí que é diferente do que a gente está acostumado, talvez uma autoconsciência de si, do seu papel na sociedade e de como de alguma forma se sente representado enquanto cidadão e enquanto povo por figuras reais ou fictícias, por ícones mesmo.
No fim do mês passado, no dia em que Maradona completaria 63 anos, fiz essa publicação no Instagram que comentava um pouco sobre a idolatria dos argentinos com El Pibe de Oro. “Ir à Argentina e testemunhar a idolatria, a devoção, a gratidão dos argentinos por Maradona apenas aumentou minha admiração pelo personagem. Por toda a cidade há referências ao D10S deles, mas mais do que as homenagens visíveis aos olhos, parece que o coração de cada argentino pulsa na mesma velocidade que suas pernas corriam em direção ao gol. É uma paixão que talvez seja impossível explicar, só quem sente sabe”.
É uma paixão que não se limita a Maradona ou Messi, ao futebol. É por Cortázar, por Borges, pelo casal Perón, pela Mafalda, por Charly García. São figuras que transcendem a materialidade. Estão gravadas na alma e no coração dos argentinos, como parte intrínseca deles. Estar lá e testemunhar um pouco disso, talvez até sentir uma mínima fração, foi uma experiência e tanto.
Impressões muito rápidas sobre coisas e lugares (pra não me estender demais):
A flor de metal (Floralis Genérica) é horrorosa mesmo, mas fica num parque bonitinho com umas espreguiçadeiras para descansar. Dá pra ir, mas também dá pra perder;
O planetário é divertido e fica num parque com um laguinho cheio de gansos que correm atrás das pessoas, é curioso assistir;
Achei que o Malba seria maior. A visita é rápida, mas dá pra gastar um tempo apreciando o “Abaporu”, da Tarsila do Amaral, e os dois quadros da Frida Kahlo expostos lá. Também há outros artistas legais, mas dificilmente algo superará as duas já citadas e as obras do Portinari e do Di Cavalcanti expostas;
O Museu Nacional de Belas Artes é enorme, de graça e esse sim toma umas boas horas de visitação. Tem muita, muita coisa. Tem uma área enorme com artes europeias e uma porrada de artistas famosões tipo Degas, Manet, Monet, Van Gogh, Renoir, Goya e uma sala inteira com esculturas do Rodin;
A Feira de Antiguidades de San Telmo e o Caminito são claramente os rolês “pega-turista” de Buenos Aires. É tudo muito mais caro do que o normal, mas vale conhecer e prestigiar os artistas locais, e a paixão boquense. Eu, palmeirense, estive em La Bombonera no dia em que o Palmeiras jogaria contra o Boca Juniors pela Libertadores. Assisti à eliminação verde e branca em um bar lotado de bosteros (como são chamados os torcedores do Boca). Foi legal, mas não foi legal rs;
A estátua da Mafalda, em San Telmo, vale muito ser visitada durante a semana: a fila é infinitamente menor do que no final de semana;
Uma das minhas coisas favoritas nessa viagem foi a visita ao bar Perón Perón, em Palermo, em homenagem ao casal de mesmo nome (e com um altar para o Maradona). O lugar é cheio de referências aos três, mas também a outros líderes de esquerda latino-americanos, e de hora em hora a casa toca a marcha “Los Muchachos Peronistas”, que é entoada pelos funcionários do bar e pelos clientes, que batem nas mesas enquanto cantam. Quando a música acaba, tudo volta ao normal, como se nada tivesse acontecido. Memorável;
Uma dica legal de bar para fugir dos mais hypados é o Backroom Bar, que fica na Jorge Luís Borges. O ambiente é bonito, o atendimento é bom, assim como os drinks, que não são caros, e toca um jazz de fundo bastante agradável, em uma altura que não incomoda a conversa. De quebra, o bar ainda tem uma livraria que fica aberta a noite toda, como ele;
Fernet com coca não é gostoso, é bebível. A conja amou, como esperado, ela gosta de coisas amargas como a vida;
Eu sei que todo influencer que você assistir vai te indicar comer no Don Julio, que não conheci, mas se vale a dica de um ótimo lugar para comer uma carne absurdamente deliciosa, vá ao La Josefina. Não há como se arrepender, e você pode ser o amigo que dá a dica legal que ninguém mais tá dando;
Se ainda assim você for ao Don Julio, considere tomar um café no Kajuê, que fica exatamente ao lado do restaurante em Palermo Soho. Comida e bebidas ótimas, preço justo e o atendimento mais atencioso que recebemos na cidade. Pedro, você é um ícone e sempre será famoso!
Um último trago, mas já em São Paulo
Uma semana depois de termos voltado da Argentina, fomos ao show de um artista que havíamos conhecido há pouquíssimo tempo por recomendação do Bruno Capelas em sua newsletter, o Mateo Sujatovich, conhecido como Ruso ou pelo nome de seu projeto, Conociendo Rusia. A mulher que eu gosto™ comprou o vinil “Cabildo y Juramento” em Buenos Aires, cuja faixa título abre essa cartinha.
A apresentação intimista e carismática do argentino no Cineclube Cortina, no centro de São Paulo, pareceu um encerramento bonito da nossa viagem à capital argentina, com um gostinho de chorinho de fernet com coca.
Enquanto essa newsletter é finalizada, os argentinos estão indo às urnas para definir em segundo turno quem será seu novo presidente, se o atual ministro da Economia, Sergio Massa, ou o anarcocapitalista (rs) de extrema direita protofascista Javier Milei. Provavelmente quando você ler essa newsletter já saberá o vencedor. Aqui do passado, sigo na torcida para que todo e qualquer radical de direita não seja apenas derrotado nas urnas, mas que seja [inaudível]!
¡Vamos, Argentina!
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Como falei no grupo do FpE, tou lendo com duas semanas de atraso, já triste com o Milei prestes a ser empossado. Mas adorei a edição. Eu conheci uma BsAs meio diferente da sua, inclusive fui muito mal tratado ao pedir pra repetirem o que eu não tinha entendido, em umas três ocasiões, lembro bem de uma farmácia. Mas adorei a cidade de qualquer forma.
Gostei muito da escrita e das dicas de B A 🤩